sábado, 7 de fevereiro de 2015

A paisagem sonora

Almyr Gajardoni

O canadense R. Murray Schafer é uma figura singular. Pianista, regente, compositor, encenador, especialista em mitologias e religiões, dispõe de uma imaginação fantástica. Dedicado ao estudo do som, revela uma incrível originalidade nos trabalhos que desenvolve e nas questões que apresenta. Ele é um pioneiro, na verdade o criador, desse campo de estudos que chamou a paisagem sonora. Nos tempos bem antigos, ela era constituída pelos ruídos da natureza – vulcões em erupção, o vento, a água sobretudo, movimentando-se em diferentes ambientes. “A água nunca morre”, afirma. “Vive para sempre, reencarnada como chuva, como riachos murmurantes, como queda d’água e fontes, rios rodopiantes e profundos rios taciturnos”. É fascinante a descrição que apresenta, para estabelecer essas diferenças, dos riachos das montanhas suíças, que podem ser ouvidos a milhas de distância, cruzando os vales silenciosos, e dos riachos das charnecas inglesas, ao contrário mais sutis, como depreende dessa citação de Thomas Hardy: “Poderia ouvir sinfonias singulares dessas águas, como de uma orquestra não iluminada, todos tocando em diversos tons, das partes mais próximas às mais longínquas da charneca.”

Essa paisagem foi se modificando na medida em que se desenvolvia a civilização. Com ela vieram sons que não são mais naturais, como o guinchar das rodas das carroças, as marteladas do ferreiro (provavelmente o som mais forte produzido pela mão humana, até o advento da era industrial). E em seguida as fábricas, o trem de ferro, os automóveis e sua vasta família, essa parafernália para transmitir sons e imagens à distância. Com tudo isso, perdeu-se a memória de um tempo em que a audição era a mais importante faculdade do homem. Agora o mundo sofre de uma superpopulação de sons e Schafer oferece caminhos para nos ajudar a selecioná-los, verdadeiros exercícios de limpeza dos ouvidos que nos habilitem a apreciar a verdadeira paisagem sonora. Ele convida para deleitosos passeios sonoros e apresenta plausíveis argumentos para que as cidades, que dispõem de parques e jardins onde se cultivam árvores e flores da natureza, recebam também jardins sonoros, onde possamos nos deleitar com aqueles sons também naturais.

Seu livro mais importante é “A afinação do mundo”, que tem um subtítulo enorme e revelador: “Uma exploração pioneira pela história passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso ambiente: a paisagem sonora”. Schafer, como se vê, começa no passado mais longínquo para chegar às nossas postulações mais modernas: ele se pretende também um defensor do meio ambiente, no caso, o sonoro. Algumas de suas especulações mais significativas apoiam-se na revolução provocada pela possibilidade de transmitir e estocar sons que, nessas condições, não têm mais uma origem natural. “Separamos o som do produtor do som”, argumenta. “O som vocal, por exemplo, já não está ligado a um buraco na cabeça, mas está livre para sair de qualquer lugar na paisagem. No mesmo instante, ele pode sair de milhões de buracos em milhões de lugares públicos e privados, em todo o mundo, ou pode ser estocado para ser reproduzido em data posterior, talvez centenas de anos depois de ter sido originalmente produzido (...) Uma coleção de discos e fitas pode conter informações de culturas e períodos históricos completamente diversos, que pareceriam, a qualquer pessoa de outro século que não o nosso, uma justaposição surrealista e sem sentido.”

Ele considera que a expansão territorial dos sons pós-industriais ajudou a alimentar as ambições imperialistas das nações do Ocidente. O alto-falante, para ele, foi inventado por um imperialista, pois respondeu ao desejo de dominar as pessoas com o som. E cita ninguém menos do que Adolf Hitler: “Não teríamos conquistado a Alemanha sem o alto-falante”. No campo político, encontra em Hermann Hesse (“O jogo das contas de vidro”) uma proposta a respeito das relações entre música e Estado, tirada de uma fonte chinesa antiga: “... a música de uma época harmoniosa é calma e jovial, e o governo equilibrado. A música de uma época inquieta é excitada e colérica, e seu governo mau. A música de uma nação em decadência é sentimental e triste, e seu governo corre perigo.”

“Essa teoria – cito aqui o próprio Schafer – poderia sugerir que o igualitário e iluminista reinado de Maria Teresa e a graça e o equilíbrio da música de Mozart não são acidentais. Ou que as extravagâncias sentimentais de Richard Strauss estão perfeitamente de acordo com o declínio do Império Austro-húngaro. Em Gustav Mahler encontramos, esboçadas por ácida mão judaica, marchas e danças alemãs de tal sarcasmo que nelas temos uma espécie de antevisão da dance macabre política que logo se seguiria (...) Resta pouca dúvida, portanto, de que a música é um indicador da época, revelando, para os que sabem como ler suas mensagens sintomáticas, um modo de reordenar acontecimentos sociais e mesmo políticos.” Eis uma boa sugestão de pesquisa para nossos acadêmicos: como se comportou a música brasileira em diferentes estágios políticos, como o Império, a República Velha, a Revolução de 1930, o Estado Novo, a nova democracia de 1945, a ditadura militar? Para os jornalistas, uma pauta: como vai a música brasileira na era Lula e PT?

O livro “A afinação do mundo” foi brilhantemente traduzido por Marisa Trench Fonterrada, uma estudiosa e entusiasta dos trabalhos desse autor, em 2001. Foi produzido pela Editora da Unesp no mesmo ano. Para finalizar, uma grave e inquietante questão (como são todas as ligadas às nossas duvidas ambientais) levantada por Schafer logo nas primeiras páginas: “A paisagem sonora mundial é uma composição indeterminada, sobre a qual não temos controle, ou seremos nós, os seus compositores e executantes, encarregados de dar-lhe forma e beleza?”

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