A paisagem sonora
Almyr Gajardoni
O canadense R. Murray
Schafer é uma figura singular. Pianista, regente, compositor,
encenador, especialista em mitologias e religiões, dispõe de uma
imaginação fantástica. Dedicado ao estudo do som, revela uma
incrível originalidade nos trabalhos que desenvolve e nas questões
que apresenta. Ele é um pioneiro, na verdade o criador, desse campo
de estudos que chamou a paisagem sonora. Nos tempos bem antigos, ela
era constituída pelos ruídos da natureza – vulcões em erupção,
o vento, a água sobretudo, movimentando-se em diferentes ambientes.
“A água nunca morre”, afirma. “Vive para sempre, reencarnada
como chuva, como riachos murmurantes, como queda d’água e fontes,
rios rodopiantes e profundos rios taciturnos”. É fascinante a
descrição que apresenta, para estabelecer essas diferenças, dos
riachos das montanhas suíças, que podem ser ouvidos a milhas de
distância, cruzando os vales silenciosos, e dos riachos das
charnecas inglesas, ao contrário mais sutis, como depreende dessa
citação de Thomas Hardy: “Poderia ouvir sinfonias singulares
dessas águas, como de uma orquestra não iluminada, todos tocando em
diversos tons, das partes mais próximas às mais longínquas da
charneca.”
Essa paisagem foi se
modificando na medida em que se desenvolvia a civilização. Com ela
vieram sons que não são mais naturais, como o guinchar das rodas
das carroças, as marteladas do ferreiro (provavelmente o som mais
forte produzido pela mão humana, até o advento da era industrial).
E em seguida as fábricas, o trem de ferro, os automóveis e sua
vasta família, essa parafernália para transmitir sons e imagens à
distância. Com tudo isso, perdeu-se a memória de um tempo em que a
audição era a mais importante faculdade do homem. Agora o mundo
sofre de uma superpopulação de sons e Schafer oferece caminhos para
nos ajudar a selecioná-los, verdadeiros exercícios de limpeza dos
ouvidos que nos habilitem a apreciar a verdadeira paisagem sonora.
Ele convida para deleitosos passeios sonoros e apresenta plausíveis
argumentos para que as cidades, que dispõem de parques e jardins
onde se cultivam árvores e flores da natureza, recebam também
jardins sonoros, onde possamos nos deleitar com aqueles sons também
naturais.
Seu livro mais
importante é “A afinação do mundo”, que tem um subtítulo
enorme e revelador: “Uma exploração pioneira pela história
passada e pelo atual estado do mais negligenciado aspecto do nosso
ambiente: a paisagem sonora”. Schafer, como se vê, começa no
passado mais longínquo para chegar às nossas postulações mais
modernas: ele se pretende também um defensor do meio ambiente, no
caso, o sonoro. Algumas de suas especulações mais significativas
apoiam-se na revolução provocada pela possibilidade de transmitir e
estocar sons que, nessas condições, não têm mais uma origem
natural. “Separamos o som do produtor do som”, argumenta. “O
som vocal, por exemplo, já não está ligado a um buraco na cabeça,
mas está livre para sair de qualquer lugar na paisagem. No mesmo
instante, ele pode sair de milhões de buracos em milhões de lugares
públicos e privados, em todo o mundo, ou pode ser estocado para ser
reproduzido em data posterior, talvez centenas de anos depois de ter
sido originalmente produzido (...) Uma coleção de discos e fitas
pode conter informações de culturas e períodos históricos
completamente diversos, que pareceriam, a qualquer pessoa de outro
século que não o nosso, uma justaposição surrealista e sem
sentido.”
Ele considera que a
expansão territorial dos sons pós-industriais ajudou a alimentar as
ambições imperialistas das nações do Ocidente. O alto-falante,
para ele, foi inventado por um imperialista, pois respondeu ao desejo
de dominar as pessoas com o som. E cita ninguém menos do que Adolf
Hitler: “Não teríamos conquistado a Alemanha sem o alto-falante”.
No campo político, encontra em Hermann Hesse (“O jogo das contas
de vidro”) uma proposta a respeito das relações entre música e
Estado, tirada de uma fonte chinesa antiga: “... a música de uma
época harmoniosa é calma e jovial, e o governo equilibrado. A
música de uma época inquieta é excitada e colérica, e seu governo
mau. A música de uma nação em decadência é sentimental e triste,
e seu governo corre perigo.”
“Essa teoria – cito
aqui o próprio Schafer – poderia sugerir que o igualitário e
iluminista reinado de Maria Teresa e a graça e o equilíbrio da
música de Mozart não são acidentais. Ou que as extravagâncias
sentimentais de Richard Strauss estão perfeitamente de acordo com o
declínio do Império Austro-húngaro. Em Gustav Mahler encontramos,
esboçadas por ácida mão judaica, marchas e danças alemãs de tal
sarcasmo que nelas temos uma espécie de antevisão da dance
macabre política que logo se seguiria (...) Resta pouca dúvida,
portanto, de que a música é um indicador da época, revelando, para
os que sabem como ler suas mensagens sintomáticas, um modo de
reordenar acontecimentos sociais e mesmo políticos.” Eis uma boa
sugestão de pesquisa para nossos acadêmicos: como se comportou a
música brasileira em diferentes estágios políticos, como o
Império, a República Velha, a Revolução de 1930, o Estado Novo, a
nova democracia de 1945, a ditadura militar? Para os jornalistas, uma
pauta: como vai a música brasileira na era Lula e PT?
O livro “A afinação
do mundo” foi brilhantemente traduzido por Marisa Trench
Fonterrada, uma estudiosa e entusiasta dos trabalhos desse autor, em
2001. Foi produzido pela Editora da Unesp no mesmo ano. Para
finalizar, uma grave e inquietante questão (como são todas as
ligadas às nossas duvidas ambientais) levantada por Schafer logo nas
primeiras páginas: “A paisagem sonora mundial é uma composição
indeterminada, sobre a qual não temos controle, ou seremos nós, os
seus compositores e executantes, encarregados de dar-lhe forma e
beleza?”
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