No
começo dos anos 1980 a intelectual francesa Elizabeth Badinter
brilhou no Brasil, primeiro nas páginas amarelas de Veja,
depois nas de Cláudia,
defendendo uma idéia original que chamou “o mito do amor materno”.
Agora, tendo já assumido o título de filósofa, brinda-nos com um
livro fascinante: As
paixões intelectuais.
São três portentosos volumes – Desejo
de glória, 1735-1751;
Exigência de
dignidade, 1751-1762;
e Vontade de poder,
1762-1778. Uma
edição impecável da Civilização Brasileira.
Ela nos
conta como, no século 18, o Século das Luzes, como é conhecido, as
relações e rivalidades entre os intelectuais foram sensivelmente
alteradas pelo aparecimento de uma nova força – a opinião
pública. E como o conhecimento, desde então, tornou-se sinônimo de
prestígio aos olhos da burguesia ascendente, que tomaria o poder da
aristocracia logo adiante, na grande revolução que marcou a
passagem do século e mudou definitivamente a vida em sociedade.
Vamos a uma longa citação, para começo de conversa: “Só com o
advento do humanismo e da revolução intelectual do Renascimento o
saber deixaria de ser apanágio exclusivo dos teólogos. A renovação
científica é essencialmente obra de leigos que lançam por terra ao
mesmo tempo o cosmos da Antiguidade e o cabresto escolástico. No
século 17, Descartes, Newton, Huygens, Fermat e Roberval lançam os
princípios da ciência moderna, que dispensa a teologia. Com isso
propiciam numerosas descobertas científicas e técnicas que
despertam o interesse do poder público. O rei e seus ministros
dão-se conta das vantagens que podem advir do desenvolvimento das
ciências – principalmente do progresso da Astronomia, que facilita
a navegação, e da Óptica, cujos instrumentos mudam a visão
humana. O saber torna-se fonte de riquezas e glória. O Estado quer
agora transformá-lo em propriedade sua.”
Fique
claro que estamos, aqui, falando da França. É o governo monárquico
que propicia a criação das Academias – a Francesa, criada por
Richelieu, em 1634; a de Inscrições e Belas Letras, fundada por
Colbert, em 1663; e a mais recente, criada também por Colbert em
1666, a Real das Ciências. Com elas, a monarquia estimula e valoriza
a inteligência, criando uma espécie de comunidade que pouco a pouco
tomará consciência de suas especificidades, de seus interesses e de
seu poder. É o que se chamou, então, “a República das Letras”.
A Academia de Ciências é o centro dessa nova era, e integrá-la é
o sonho de todo intelectual. Vamos a outra citação: “Fonte de
descobertas e riquezas para o reino, ela é o símbolo do progresso
das ciências e das artes, logo, de tudo que contribui para a
felicidade da humanidade (...) Mais que suas antecessoras, suscitou a
cobiça dos intelectuais e a admiração de um público nascente, que
se ampliou consideravelmente no século 18. O Iluminismo fascina, e
esta Academia é seu principal depositário.”
São esses
intelectuais, portanto, que com o seu saber, brilham e se destacam na
sociedade. Para eles, quase tão importante quanto ter os seus
trabalhos reconhecidos na Academia, é tê-los também reconhecidos
nos grandes salões onde se desenrola a elegante e fofoqueira vida
social do período. É o matemático e astrônomo Pierre-Louis Moreau
de Maupertuis, quem melhor caracteriza essa ambição –
“atormentado pelo desejo da celebridade, ele é o primeiro a romper
o tabu herdado do passado que exigia discrição e modéstia.
Protagonista de uma grande disputa científica que talentosamente
transforma em acontecimento da vida pública, ele não esconde que
quer glória, honrarias e dinheiro”.
Essa
grande disputa científica opõe ingleses e franceses, naturalmente.
Em Londres, Isaac Newton desenha a Terra achatada nos pólos e
alargada no equador; em Paris, Descartes, Jean Picard e a família
Cassini, de origem italiana, sustentam que ela é alongada nos pólos
e estreita no equador. Limão ou tangerina?, perguntava-se na época.
Para esclarecer a discórdia, a Marinha inglesa envia três
acadêmicos ao equador, onde mediriam um eixo do meridiano terrestre.
Enquanto os mestres ingleses ainda navegam, Maupertuis apresenta mais
uma dissertação na Academia francesa, e defende o envio de outra
expedição, mas às proximidades do Pólo Norte, a fim de confirmar
ou desmentir as descobertas dos ingleses. Audacioso, ele não teme
contrariar a opinião da maioria dos seus pares, que torcem pelo
limão e os patrícios Cassini – tendo estudado na Inglaterra, ele
é um raro francês a apoiar a teoria de Newton. Naturalmente, será
o chefe dessa expedição.
Uma frase
de Badinter define o que aconteceu daí por diante: “Ninguém
imaginava então que a expedição chefiada por Maupertuis poria fim
a essa bela unanimidade de fachada (pelo limão); que os acadêmicos
se enfrentariam com uma violência até então desconhecida; e que o
orgulho de uns e a suscetibilidade de outros, exacerbados pelo olhar
do público, transformariam um debate científico em autêntica
guerra civil.” O debate sai da Academia, invade os salões
elegantes, tanto os da nobreza decadente quanto os da burguesia
ascendente. Suas proprietárias – a marquesa De Lambert, a Senhora
De Tencin, a Senhora Geofrey, a Senhora Du Châtelet, entre outras –
disputam avidamente a presença dos combatentes intelectuais em suas
reuniões semanais. E Maupertuis, na condição de primeiro
newtoniano francês, e portanto grande vencedor, mas também sedutor
e bom de papo, é o mais ambicionado. Embora seja um amante grosseiro
e volúvel, as mulheres o assediam.
Essa
opinião pública que se reúne nos salões, mas se esparrama também
pelos restaurantes, cafés, os locais menos elegantes onde se reúne
a pequena burguesia, não quer apenas admirar os guerreiros –
deseja entender a disputa. E assim torna-se moda estudar ciência,
Matemática sobretudo. O cúmulo do chique é estudar com Maupertuis,
naturalmente, mas muitos outros físicos, matemáticos, astrônomos
da Academia mantêm seus cursos, anunciados regularmente nas páginas
do Mercure,
o periódico que todos lêem. Alexis Clairaut, um menino prodígio da
Matemática, modesto, companhia agradável, bem ao contrário de seu
mestre Maupertuis, não faz o mesmo sucesso no mundo social. Explica
a Senhora De Graffigny: “”A parte a Geometria, ele é quase um
tolo. É tão pouco do mundo, fala de maneira tão sem graça, que é
impossível divertir-se com ele. É um bom rapaz, bom caráter, pelo
que dizem, mas não passa disso.” Não é o que pensa a Senhora Du
Châtelet, que sempre o requisita: “Alegre, encantador, e tão bom
professor de Matemática.”
Talvez
esta seja a característica mais bizarra daquela sociedade
efervescente: enquanto a gente comum, e até mesmo as grandes
cocotes, tentam desesperadamente entender a ciência, os acadêmicos
batalham por se tornarem menos sisudos, companhias agradáveis, finos
praticantes da melhor etiqueta. Afirma Badinter: “O interesse pelas
ciências, e de maneira mais geral o desejo de saber e compreender, é
um dos fenômenos marcantes do século 18. Ele vai de par com a
proliferação do número de jornais, o desenvolvimento das
bibliotecas públicas e dos gabinetes de leitura em Paris e na
província, o desenvolvimento das academias de província, o aumento
da publicação de livros e do lugar ocupado pelas ciências nas
grandes publicações, como o Journal
des Savants, o
Mercure
e o Journal de
Trévoux.
Começam
a aparecer, então, os manuais, publicações preparadas pelos
acadêmicos para instruir o grande público. Elementos
de Geometria é um
dos primeiros, escrito pelo jovem Clairaut, e faz estrondoso sucesso.
Diz o Journal des
Savants: “Este
acadêmico versado nas mais sublimes especulações faz com que a
Geometria mais simples tome hoje um novo caminho e por assim dizer um
novo impulso, fazendo com que seja lida pelas pessoas (...) que
sentem por ela uma espécie de repugnância.” As fofocas dos salões
garantiam que se tratava de mera redação das aulas que ele havia
dado à Marquesa Du Châtelet, mas Clairaut defendeu-se
elegantemente: Emilie já sabia muito mais quando ele começou a
orientar seus estudos.
O
abade Noillet é outro menino prodígio que encanta as senhoras
mundanas. Constroi com as próprias mãos os aparelhos de que
necessita, termômetros, sobretudo, faz pesquisas com eletricidade,
aperfeiçoa-se em Física na Inglaterra. E é outro destaque nos
salões: a Senhora Du Châtelet, que deseja ir além da Matemática,
encomenda-lhe os aparelhos necessários para petrechar seu próprio
laboratório. É ela quem relata, numa carta: “Ele me diz que só
se vêem em sua porta carruagens de duquesas, de pares e de belas
mulheres.” Mas não é apenas a grande dama que o elogia. O Journal
dês Savants
garante: “Eis então que a boa filosofia se apresta a fazer
fortuna em Paris. Seu segredo: instruir sem entediar. Os homens, as
senhoras e os alunos que ainda não fizeram a sua filosofia podem
assistir com grande proveito, pois ele sabe evitar os erros
populares, os temores ridículos, o falso maravilhoso.”
O
comentário é de Badinter: “O abade fazia da Física experimental
um divertimento na moda.” Ele anuncia seus cursos no Mercure.
São seus alunos, entre outros, o duque de Penthièvre e o filho do
rei da Sardenha. Leciona na universidade, “onde, apesar da época
das férias e das colheitas, aparecem diariamente pelo menos duzentas
pessoas de todas as idades, de ambos os sexos e de todas as
condições.” O químico Guillaume-François Rouelle também
anunciava no Mercure,
e também fazia sucesso. Le Guay de Prémontval, aparentemente, não
precisava ganhar dinheiro: seus cursos, também anunciados no
Mercure,
são dados três vezes por semana, e de graça. Logo as três aulas
semanais já não bastam, tamanha é a procura: ele passa a ensinar
também nos sábados e domingos.
Badinter
assim conclui essa parte de sua obra: “O fato é que a moda dos
cursos públicos, muito bem lançada no início da década de 1740,
não mais cessaria até a Revolução.”
A perda
e a reconquista do respeito
Estamos
agora em 1751. Escreve Badinter: “Efêmera, às vezes amarga, a
glória do intelectual deve estar sendo sempre reconquistada. E essa
reconquista é cada vez mais difícil. O intelectual é espreitado
pelos pares e o público adora destruir o que ele venerou. É preciso
ter o gênio e o temperamento de Voltaire para se impor a todos
durante seis décadas.” Luís XIV havia morrido e com ele a moda
de o rei distribuir renome e pensões, em troca de submissão a suas
regras e lisonjas a sua pessoa. Luís XV não dá a mesma importância
ao mundo das letras ao mesmo tempo em que surge uma nova geração de
intelectuais. Rousseau, Diderot, D’Alembert e outros com eles
ignoram a corte e tanto suas vantagens quanto suas obrigações:
querem escrever com liberdade, passando ao largo da censura do Estado
monárquico e da Igreja. “Liberdade, verdade e pobreza são as três
palavras que os homens de letras deveriam ter sempre em mente”,
proclama D’Alembert. Para que servem a glória, os títulos, a
riqueza se o preço a pagar é o compromisso e a dependência?
Rousseau,
que vive de copiar pautas musicais, foi o que mais se aproximou dessa
condição, recusando sempre fazer qualquer concessão que
comprometesse sua liberdade. Isso o obrigou a uma vida de limitações,
chegando a abandonar cinco filhos; mesmo Voltaire, que era rico,
precisou exilar-se 24 anos para manter sua liberdade. A maioria,
porém, teve de fazer concessões em todos os terrenos. Muitos, o
próprio Voltaire inclusive, cederam à tentação da Prússia, para
onde os convidava o imperador Frederico II, acenando com dinheiro e
liberdade de pensar e escrever, esta um bem precioso porque
desconhecido na França. Ali não havia livros proibidos e queimados,
nenhuma ameaça contra seus autores – o rei que se presumia
filósofo sempre teve como ponto de honra proteger os escritores
perseguidos pela Igreja e pelos padres. Esta é a imagem que ele
passa ao mundo, e muitos foram atraídos por ela.
A
descrição das noites no castelo de Frederico, em Potsdam, a vinte
quilômetros de Berlim, pode ser fascinante. “Potsdam é uma ilha
de silêncio, liberdade e recolhimento (...) lugar de meditação e
trabalho sem entraves para todos aqueles que, como Voltaire, têm
obras a escrever. Além disso, é ali que Frederico reúne à noite
seu grupinho de ‘belos espíritos’ para ceias íntimas que primam
pela alegria e liberdade de expressão (...) Todos são excelentes
conversadores afeitos à provocação e aos gracejos, filósofos na
alma, decididamente deistas, quando não ateus, como Frederico. É
uma verdadeira competição para ver quem sai com as sátiras mais
alegres, as graçolas mais iconoclastas, as farsas mais pesadas. Em
certas ocasiões, de acordo com o humor de Frederico e o calor de
seus convivas, nenhuma mesa real da Europa se equipara a esta. Em
nenhum outro lugar se alternam, como aqui, debates filosóficos e
risadas libidinosas. Na ausência de damas – o que era de se
esperar, tratando-se do rei – tudo é permitido”. Mas logo vem a
advertência: “No palácio do déspota, contudo, por esclarecido
que seja, a licença tem limites que variam ao sabor de seus
caprichos. A igualdade é um mito que não engana ninguém. O rei é
um cínico, um perverso e um dominador que, sob a capa da liberdade,
exige absoluta submissão. Um sinal de familiaridade deslocado ou um
comportamento que desagrada podem levar a uma desgraça mais ou menos
prolongada (...) Além disso, ninguém pode deixar o reino de
Frederico sem sua autorização.”
Todos os
que foram viver na Prússia acabaram percebendo, a duras penas, que o
imperador era um déspota tão sovina quanto cruel, sempre que o
contrariavam. Sobre ele escreveu o historiador inglês lord
Macaulay, quando assumiu o trono: “Ninguém alimentava a mais leve
suspeita de que um tirano de extraordinários talentos políticos e
militares, e de uma atividade ainda mais extraordinária, sem medo,
sem fé e sem compaixão, havia subido ao trono.” Talvez a mais
dura lição tenha sido aprendida pelo grande Voltaire, que ali fora
recebido como um deus: nomeado camareiro, recebeu uma patente
vitalícia que lhe assegurava uma pensão de oitocentas libras
esterlinas por ano, os cozinheiros reais e os cocheiros foram postos
a sua disposição e o imperador agora pretendia ser assim chamado:
“Frederico, rei da Prússia, margrave de Brandenburgo, duque
soberano da Silésia, possuidor de Voltaire”. A lua de mel não
durou muito e depois de uma série de desentendimentos, o filósofo
decidiu voltar para Paris. Ao viajar, esqueceu de devolver o maço de
papéis com versos escritos por Frederico, e a vingança foi
terrível: quando chegou a Frankfurt, já na fronteira, foi preso,
tomaram-lhe os versos, deixaram-no preso durante doze dias, a
sobrinha que ali fora esperá-lo foi arrastada na lama pelos
soldados, tomaram-lhe o dinheiro que levava.
Voltaire
estava agora num impasse: não podia voltar a Berlim, nem era
desejado em Paris, onde sua entrada fora proibida. Foi obrigado a
refugiar-se na Suissa. “Ali – escreveu Macaulay – livre de
todos os laços que até então o tinham prendido e pouco tendo a
temer de Cortes e Igreja, começou a sua longa guerra contra tudo o
que, para o bem ou para o mal, tinha autoridade sobre os homens (...)
Muitas vezes saboreou um prazer caro à parte melhor de sua natureza,
o prazer de pugnar pela inocência que não tinha outro apoio, de
fazer reparar danos cruéis, de anatematizar a tirania sentada em
lugares elevados. Teve também a satisfação, não menos grata à
sua insaciável vaidade, de ouvir aterrorizados capuchinhos
chamar-lhe o Anti-Cristo.”
Em
Paris, o grande sucesso agora é a Enciclopédia,
medido pelo vigor da polêmica que provoca. No início do verão, só
se falava do Discurso
Preliminar, escrito
por D’Alembert, e logo foram descobertos os artigos de Dumarsais
sobre a gramática, os inovadores textos sobre as artes e ofícios de
Diderot, os artigos científicos. A senhora De Bonneval, que encara
com bom humor todos os livros que fazem sucesso, põe a circular um
epigrama:
“Eis
aqui a Enciclopédia;
Felicidade
para os ignorantes!
Quantos
falsos sábios
Dará à
luz a douta rapsódia!...”
Os
números iniciais dão conta da ótima recepção: eram 1.625
subscritores mas precisaram ser impressos 2.075 exemplares do
primeiro volume. E logo chovem ofertas de artigos de novos
colaboradores potenciais. Diderot e D’Alembert são os criadores e
os produtores da novidade. Os grandes, como Voltaire, Montesquieu e
Buffon ainda se mantêm distantes, mas não faltam artigos para as
edições seguintes. O cavaleiro Jaccourt despontava como o
“soldadinho fiel” da nova empreitada: escreveu oito artigos para
o segundo volume, mas chegou a produzir entre um quarto e a metade
dos seis volumes seguintes e a metade dos dois últimos. Algo como
dezessete mil artigos, abarcando temas como botânica, política,
história da arte, geografia, física, zoologia. O barão D’Holbach,
alemão, escreveu para os volumes II a XVII 430 artigos assinados e
centenas de outros, anônimos, sobre mineralogia, metalurgia e
física. A residência do barão, por sinal, chamada “sinagoga”
e “café da Europa”, foi o laboratório da Enciclopédia,
local de decisões sobre sua orientação filosófica, opções
ideológicas e política geral.
A
enorme repercussão do primeiro volume, devida sobretudo ao Discurso
Preliminar, torna
D’Alembert de repente o grande destaque de Paris. Mas já no outono
começa a tempestade: os inimigos dos filósofos fazem a leitura e a
releitura do Discurso
e dos artigos do primeiro volume e percebem que quase todos escapam
da ortodoxia. Ainda assim, nada perturba os comandantes do trabalho.
Se o Journal de
Trévoux, dos
jesuítas, ataca o Prospectus
que anuncia o nascer da grande obra, não chega a preocupar, a
resenha do Journal
des Savants é um
alerta: “Somos obrigados a advertir que esse trabalho tem defeitos
e contém inclusive coisas perigosas (...) O autor supõe que as
sensações são a única origem das idéias (...) O sistema de Locke
é perigoso para a religião (...) Caberia indicar nesse prefácio
um exagerado laconismo no que diz respeito à religião.”
A
trajetória da Enciclopédia
é atribulada. Foi proibida em 1752 e 1759, devido a artigos que
discutiam a religião. Baixam-se ordens de prisão contra os autores,
dois abades, e o próprio Diderot é ameaçado. Um observador
amedrontado registra: “Desgraçados sejam os inimigos dos jesuitas!
A Inquisição francesa vê aumentarem seu alcance e seu poder.”
Aqui, no entanto, é preciso registrar: a França, como dizia Manoel
Bandeira de Pasárgada, é outra civilização. A Inquisição é
poderosa, como em toda parte, mas não consegue acender fogueiras –
ela tem de disputar o favor da opinião pública, contra os
filósofos, para impor seus objetivos, mas estes nem de longe se
assemelham aos obtidos em Espanha e Portugal. Um exemplo dessas
diferenças: encarregado de apreender todos os manuscritos dos
próximos volumes, o chefe da censura Malesherbes secretamente alerta
Diderot, que lamenta: “O que o senhor vem de anunciar me deixa
terrivelmente triste; eu jamais terei tempo de transferir todos os
meus manuscritos, e aliás não é fácil encontrar em 24 horas
pessoas dispostas a cuidar deles e que possam mantê-los em segurança
em suas casas.” Então acontece o que seria inacreditável, se não
estivéssemos em França: o censor responde: “Mande todos eles para
a minha casa, pois aqui não virão buscá-los”. A filha de
Diderot, que conta o episódio, informa que o pai “enviou metade do
seu escritório para a casa daquele que ordenara a busca”.
A
linguagem da época confunde filósofo com cientista, mas a diferença
já começa a ser percebida. Diderot é um filósofo, conhece as
agruras de batalhar por idéias, já esteve na prisão por causa
delas; D’Alembert, ao contrário, é um matemático que só agora
começa a se aventurar pela filosofia e acaba de aprender: as
audácias do filósofo custam mais caro do que as do cientista. Diz
Badinter: “Este se expressa livremente, aquele só pode pensar com
autorização; além do mais, a autoridade que julga já não é a
razão, mas a ideologia, vale dizer, as crenças, os preconceitos, os
interesses. Dura revelação para um homem habituado a manusear
números e curvas.” Esse homem começa a tomar consciência de seu
novo lugar na sociedade e, apesar de muito ocupado com o trabalho na
Enciclopédia,
esboça uma espécie de “manifesto dos intelectuais”, em que
procura traçar os contornos de um estatuto e de uma ética
intransigentes, “uma exortação à independência e à dignidade,
qualquer que seja o preço a pagar”, registra Badinter. Os
enciclopedistas não são ameaçados apenas pela violência física
contra sua obra e suas pessoas – enfrentam também ameaças
intelectuais, pois a Inquisição, se não tem fogueiras, tem
pensadores de peso e qualidade para contestar suas idéias. Por
exemplo: eles são acusados de numerosos plágios, a maioria dos
quais comprovada. A campanha desencadeada pelos jesuítas por meio do
Journal de Trévoux
causa estragos, mas
Badinter registra: “Os seis longos artigos dedicados ao primeiro
volume da Enciclopédia
configuram um crescendo crítico tanto mais contundente por ser ao
mesmo tempo rigoroso e cortês. Os dois primeiros artigos de outubro
e novembro, frequentemente elogiosos, asseguram a objetividade dos
subseqüentes. Já são encontradas, é verdade, algumas observações
sobre os erros de ortografia, os esquecimentos, a ausência de
remissão às fontes consultadas, mas fica em geral a impressão de
que os autores são criticados por simples negligências. O artigo de
dezembro, ainda moderado, é mais devastador. Ele examina cada artigo
baseado em outros trabalhos sem citá-los, como o Dicionário
de Trevoux, o
Dicionário de
Medicina, a Bíblia
ou as Instituições
astronômicas, de
Lemmonier. Mais cruel, ainda, o padre Berthier publica lado a lado o
artigo da Enciclopédia
e o texto consultado, às vezes sem uma diferença de vírgula.”
Os
dois últimos artigos de fevereiro e março de 1752 continuam a
implacável revelação dos plágios e atacam artigos fundamentais do
primeiro volume, como “Aristotelismo”
e “Autoridade
política”, e a
irreligião que aparece em toda parte. Registra Badinter: “O
resultado é constrangedor e as críticas começam a levar a melhor
sobre os elogios. Como o meio literário aprecia acima de tudo as
críticas virulentas, a notícia se propaga com rapidez, mesmo
além-fronteiras. De Potsdam, o marquês D’Argens anuncia a
Maupertuis (o matemático francês que ali preside a Academia de
Ciências): ‘Foi suspensa a edição da Enciclopédia.
Jesuitas, jansenistas, devotos e neutros estão unidos, percebe-se
uma fúria generalizada contra esse trabalho no mundo dos carolas
(...) Será publicado em Paris um trabalho no qual se revela, pelo
que dizem, 1.800 erros dos mais grosseiros nos dois primeiros
volumes.’
A
proibição dos dois primeiros volumes pelo Conselho do Rei provoca
boatos alarmantes: dizia-se que os autores seriam presos e
supliciados e Diderot realmente temeu voltar à prisão. Mas os
boatos são apenas boatos -- nada acontece, e eles decidem lutar
pela sobrevivência do dicionário. Graças à benevolência de
Malesherbes, o censor, o privilégio de publicação continua de pé.
Para levá-la a efeito, contudo, é preciso fazer com que as
autoridades confiem na disposição dos redatores em observar as
novas regras. Embora pouco transite pela vida social, Diderot procura
obter o favor da marquesa de Pompadour, que responde sibilinamente:
“Nada posso fazer (...) São os eclesiásticos que os acusam e eles
nunca admitem estar errados (...) Todavia, todos me falam bem do
senhor. Seu mérito é apreciado; sua virtude, reconhecida (...)
Terei o maior prazer em atendê-lo no que for possível.” A
mensagem é ambígua, mas Badinter a interpreta: “Oficialmente nada
posso fazer, mas não deixarei de falar a respeito com quem de
direito”. A promessa foi cumprida, pois alguém fez o registro: “A
Senhora de Pompadour e alguns ministros solicitam que D’Alembert e
Diderot voltem ao trabalho da Enciclopédia,
observando uma reserva necessária no que diz respeito à religião e
à autoridade”. É uma vitória amarga; a Enciclopédia
parece condenada e em Potsdam Maupertuis chega a sonhar: “Seria uma
bela aquisição trazer para cá toda a sociedade enciclopédica
(...) e dar continuidade a esse trabalho. Semelhante colônia de
refugiados da filosofia reformada seria mais útil que a religião
reformada.”
Aparentemente,
a Enciclopédia
havia sido
destruída, mas pouco depois D’Alembert registra numa carta que
“toda a França deseja que tenha continuidade, a coisa toda parece
acalmada e acertada”. E chega a impor condições às autoridades
para voltar ao trabalho: uma retratação do Journal
des Savants,
proibição aos jesuítas de escrever contra o dicionário, a
possibilidade de afirmar que “as idéias procedem dos sentidos” e
de publicar separadamente, sem nenhuma alteração imposta pela
censura, o seu Discurso
preliminar. E
finalmente, exige a designação de censores razoáveis, “não mais
animais embrutecidos”. Deve ter sido atendido, pois os volumes
continuaram a ser produzidos e impressos. Só mesmo na França isso
seria possível.
Mas
a essa altura, 1757, a tentativa de assassinato do rei Luís XV
anuncia tempos difíceis. Fanáticos das mais variadas tendências
unem-se contra a Enciclopédia
e começa uma fase de severa repressão filosófica. Com sucesso, em
boa parte devido à desunião dos próprios filósofos. Amigos não
se falam mais, Diderot caiu em descrédito pois uma peça teatral sua
é considerada plágio, D’Alembert pretende abandonar a
Enciclopédia
justo no momento em que vem a público o sétimo volume, unanimemente
considerado o melhor de todos. Voltaire, isolado, prega sozinho a
união, mas o partido filosófico está em frangalhos, e continua a
descer a ladeira. Eis o registro de Badinter: “Só porque um
desequilibrado deu um golpe de canivete entre a quarta e a quinta
costela de Luís XV, a ordem social vacila (...) o regicida é um
monstro atrás do qual alguém se esconde. Nesse período de forte
tensão social, no qual a queda-de-braço entre o rei e seus
parlamentos encobre uma guerra sem trégua entre jesuítas e
jansenistas, cada partido logo trata de atribuir a autoria do golpe
ao inimigo. Mal é divulgada a notícia, começam as suspeitas, as
denúncias, os acertos de contas.”
Damiens,
o fracassado regicida, é condenado à morte e simplesmente
esquartejado e queimado. O horror dessa sentença será tema de
debates acalorados, mas os filósofos não têm tempo para se deter
no caso do infeliz. Voltaire é o primeiro a pressentir o perigo que
ronda os filósofos e adverte D’Alembert: “Como se dá que os
fanáticos se apóiem reciprocamente e os filósofos estejam
desunidos, dispersos? Trate de reunir o rebanho. Coragem. Temo que
Damiens cause muito mal à filosofia.” A Enciclopédia,
unanimemente atacada pelos fanáticos, pode tornar-se o bode
espiatório. Logo surge um novo jornal, de nome sugestivo: A
Religião Vingada,
ou Refutação dos
Autores Ímpios. Já
a folha humorística Cacouacs
ridiculariza os
filósofos com graça e espírito e faz rir toda Paris. O público
aplaude e os filósofos ficam raivosos, a ponto de se desentenderem
entre si.
Apesar
de tudo, o sucesso da Enciclopédia
continua crescendo: o sétimo volume tem tal repercussão que o
número de assinaturas chega a quase quatro mil. Mas há reações
importantes por causa do artigo Genebra:
na França, porque ele critica o catolicismo, na Suiça porque afirma
que os pastores protestantes, embora creiam em Deus, têm mais razão
do que fé. Foi escrito por D’Alembert, que o defende
apaixonadamente; Diderot não demonstra o mesmo entusiasmo,
esquiva-se da responsabilidade e o resultado é trágico: D’Alembert
desliga-se da Enciclopédia. Voltaire tenta salvar o empreendimento,
“por demais importante para que eles não consigam, unidos, fazer
recuar os inimigos”. Mas o momento é desolador: muitos outros
colaboradores pretendem deixar de escrever.
O ambiente
se torna pesado em todo universo intelectual – até nas Academias
há um certo ar de acerto de contas, discute-se tudo raivosamente.
Voltaire, do seu exílio na Suiça, é o único que luta por recompor
a unidade, embora se lamentando: “Os filósofos me deixam furioso,
não sabem o que estão fazendo. Estão desunidos e eu preferia ter
de lidar com mocinhas de coro de ópera do que com eles; elas seriam
mais razoáveis.” E lança-se sozinho ao que será o grande combate
de sua vida: a luta contra o fanatismo. Assinala Badinter: “As
injustiças e crueldades cometidas pelos homens em nome de Deus
levam-no a se apresentar como o campeão da tolerância e da
humanidade.”
Em
1762, ele toma conhecimento do caso Calas, um comerciante da região
de Toulose, protestante, acusado de matar o próprio filho para
impedi-lo de converter-se ao catolicismo. Foi um companheiro eventual
de jantar que lhe contou, enfatizando os defeitos da instrução do
processo, as pressões populares, as incoerências da acusação, a
honradez da família e, sobretudo, o fato de Calas sempre proclamar
sua inocência, mesmo quando amarrado a uma roda, com os braços e as
pernas quebrados a pauladas.Voltaire fica chocado e indignado.
Pergunta e responde: “Por que me interesso tanto por esse Calas
supliciado? É que sou um homem. Essa terrível aventura desonra a
natureza humana, seja Calas culpado ou inocente. Existe certamente,
de um lado ou de outro, um terrível fanatismo.”
Lança-se
então numa infatigável investigação pessoal do episódio.
Consegue entrevistar os dois outros filhos de Calas, reúne todas as
informações possíveis com outros conhecidos do condenado, estuda
todas as fontes escritas. Cobra do Parlamento de Toulouse a
publicação de todas as peças do processo. Não é atendido, mas
confronta as declarações dos advogados com as da família do
acusado e se convence: Calas é inocente, o filho suicidou-se. Mas
como prová-lo, se o Parlamento impede que seja conhecida a verdade?
Ninguém o ajuda, nas altas esferas do Estado não há vontade de
provocar atritos por causa de um protestante supliciado. Paga a um
advogado para solicitar a revisão do processo. Para isso, é preciso
convencer o rei. O fato é que a missão parece impossível, tal a
dificuldade de vencer a inércia geral e convencer o Parlamento de
Toulouse a cooperar.
“Quem
encarna este combate é Voltaire e ninguém mais”, observa
Badinter. Ele não está sozinho, há os banqueiros protestantes da
Suissa que podem cooperar, há os príncipes e princesas alemães. E
segue: “Os filósofos aprovam e admiram seu combate, mas nenhum
deles associou seu nome à campanha pública. Voltaire é o
catalisador de energias (...) Foi graças a seu prestígio, a sua
incrível diligência, a sua obsessiva pertinácia e a sua rede de
relações, única na França e na Europa, que existiu um caso
Calas.” Ele publica duas cartas comoventes e convincentes para
atingir a opinião pública: uma da viúva Calas, a outra do filho
Donat. Surgem então as Peças
originais a respeito da morte dos senhores Calas e do julgamento
ocorrido em Toulouse.
Segue-se uma torrente de depoimentos e ele empreende uma vigorosa
campanha de informação e relações pública. “É preciso que o
clamor chegue aos ouvidos dos juízes, levante o Céu e a Terra
contra essa iniquidade terrível. Só desistirei desse caso com a
morte.”
Constata
Badinter: “A força moral de Voltaire opera um milagre: seus
correspondentes se mobilizam, Paris começa a se interessar e o
clamor que ele esperava faz-se ouvir cada vez mais. A opinião
pública é favorável aos Calas. A Europa do Iluminismo quer a
reabilitação.”
Foi
preciso batalhar ainda por três anos, mas Badinter pode festejar: “O
verão de 1762 assinala em sua vida uma virada de profundas
conseqüências para a filosofia do Iluminismo e a própria imagem do
filósofo. Engajando-se com todas as forças no combate à injustiça,
Voltaire adquire uma dimensão moral que não estaria ao alcance de
qualquer dos seus pares. Engajando-se sem o concurso de qualquer
outro filósofo, adquire uma aura que todos irão lhe invejar. A luta
contra ‘o infame’ foi conduzida e vencida por ele.” Diderot,
calado durante todo o evento, não esconde sua admiração: “Que
bela utilização do gênio! Como esse homem é dotado de alma, de
sensibilidade, como se sente revoltado pela injustiça e atraído
pela virtude! Pois quem são, para ele, os Calas? Que poderia fazê-lo
interessar-se por eles? Que motivos teria para suspender trabalhos
que ama para cuidar de sua defesa? Se houvesse um Cristo, posso
assegurar que Voltaire o teria salvado.”
Badinter
finaliza o volume com estas palavras expressivas: “O caso Calas
mudou radicalmente a imagem de Voltaire junto aos pares (...) Ele se
tornou um homem respeitável. É possível continuar a odiá-lo, mas
já não se pode desprezá-lo.Indiretamente, essa respeitabilidade
conquistada com tanta dificuldade vai-se estender a todo partido dos
filósofos e beneficiá-los (...) Aos olhos do público esclarecido
da época, a filosofia deixa o simples contexto da Enciclopédia.
Já não se limita a uma teoria do conhecimento ou, em termos
platônicos, à busca da verdade; exprime uma busca do bem e do justo
acessível a um maior número. Mobilizando-se para defender a
memória de um desconhecido e exigir justiça, não só Voltaire se
mostra incomparavelmente mais eficaz que todos os discursos de então
sobre a virtude como confere ao personagem do filósofo uma dimensão
moral sem precedentes. Com esta ação, o Patriarca de Ferney
devolveu-lhe a dignidade, há vários anos conspurcada. E também
demonstrou que um homem de convicção, armado de uma boa pena e de
coragem, podia mudar o rumo das coisas e conquistar um prestígio sem
igual. Com isto, abriu caminho para uma última paixão intelectual:
a vontade de poder.”
De uma
só vez, glória, dignidade e poder
Elizabeth
Badinter abre com estas palavras o terceiro e último volume do seu
estudo sobre as paixões intelectuais no século 18: “Na década de
1760 o prestígio dos filósofos está no auge. A vontade de impor
seus pontos de vista – libido
dominandi – nunca
foi tão forte. Como conseguiram marginalizar seus inimigos
irredutíveis, são considerados um partido único, que dita sua lei
a uma opinião pública ávida de modernidade. Graças a esse novo
protagonista (a opinião pública), o estatuto dos homens de letras
mudou radicalmente. Transformaram-se numa força que se deve levar em
conta, ou pelo menos fingir levar em conta. O desejo de Voltaire
parece em vias de se concretizar: os filósofos governarão o mundo
porque governam a opinião.”
Em todo
caso, há que se levar em conta o soberano, que continua sendo o
detentor do poder real – os filósofos, mesmo os mais importantes,
como Voltaire e Rousseau, não têm qualquer influência sobre ele,
na França, bem entendido. É preciso mobilizar ainda mais a opinião
pública, pois só ela pode se impor ao soberano. Se o da França não
se abala, vem do exterior a glória impossível de conquistar em
casa: muitos parecem interessados em merecer o título de “rei
filósofo”. Nada melhor para isso do que oferecer ao filósofo a
consideração que lhe é recusada em seu país. Honrarias e dinheiro
têm seu valor nessa transação, mas o que importa mesmo é o
reconhecimento de sua dignidade. Ler os seus livros, conhecer e
acatar suas idéias, suas propostas, convidá-lo para ser o preceptor
e orientador do príncipe herdeiro do trono. Haverá melhor maneira
de mostrar a adesão do soberano às idéias do filósofo?
Frederico
II, da Prússia, já praticava tudo isso. Vem agora a imperatriz da
Rússia, Catarina, que subiu ao trono em circunstâncias muito
suspeitas: o marido, Pedro III, morreu de uma cólica hemorroidal,
segundo ela própria anunciou. Ela não esconde seu empenho em
conquistar fama e prestígio: “Quero ser uma mulher extraordinária,
e tenho o pressentimento de que a Europa um dia falará de mim por
muito tempo.” Ela leu O
Século de Luis XIV
e entendeu o poder dos homens de letras para eternizar a história
dos soberanos. Ciente de que entrou para a vida pública de forma
desastrosa, empenha-se em conquistar o favor dos filósofos, os
únicos capazes de influenciar a esclarecer a opinião pública. Em
menos de três semanas, envia, por meio de terceiros, três cartas
sedutoras a D’Alembert: convida-o a ser o preceptor de seu filho,
para criá-lo de acordo com os princípios do Iluminismo, e de
quebra, garante-lhe segurança para imprimir na Rússia o que ainda
falta da Enciclopédia.
Os missivistas, explica Badinter, “chamam sua atenção para a
personalidade ímpar da soberana, seu modernismo e sobretudo a
grandeza da missão oferecida: criar o príncipe herdeiro dentro dos
princípios da filosofia representa uma oportunidade única de pesar
no destino do maior país da Europa”.
D’Alembert
não se deixou seduzir: recusa o convite com um argumento
espirituoso: “Há trinta anos venho trabalhando exclusivamente e
sem descanso, se assim posso expressar-me, em minha própria
educação, e longe estou de me sentir satisfeito com o trabalho.”
A Voltaire, manda uma informação ainda mais engraçada: “Sabia
que me foi proposta, a mim, que não tenho a honra de ser jesuíta, a
educação do grão-duque da Rússia? Mas sofro excessivamente de
hemorróidas, elas são por demais perigosas naquele país, e eu
quero sofrer do traseiro com toda segurança.” Fica claro, assim,
que o prestígio da filosofia no estrangeiro é proporcional a sua
vergonhosa perseguição em Versalhes. E D’Alembert volta a
escrever a Voltaire: “A filosofia já começa muito sensivelmente a
conquistar os tronos (...) Seu antigo discípulo (Frederico da
Prússia) deu início ao movimento, a rainha da Suécia foi adiante e
Catarina imita a ambos, e talvez venha a fazer melhor ainda.”
A rainha
não se satisfez com a recusa: escreve agora pessoalmente ao
filósofo, e apresenta argumentos consistentes e desafiadores: “Ter
nascido ou ser chamado para contribuir para a felicidade e mesmo a
instrução de um povo inteiro, e a isto renunciar, é como se
recusar a fazer o bem que o senhor toma a peito. Sua filosofia
baseia-se na humanidade; permita-me dizer-lhe que não se dispor a
servi-la quando poderia fazê-lo é faltar a sua meta.” E como
D’Alembert se declara muito afeiçoado aos amigos e não deseja
abandoná-los, ela insiste de forma arrasadora: “Venha com todos os
seus amigos, prometo-lhe, e também a eles, todas as comodidades e
facilidades que dependam de mim, e talvez encontrem mais liberdade e
tranqüilidade que em seu país”. Como o filósofo não se
abalasse, ela põe no papel argumentos bem sólidos para uma última
investida: cem mil libras de emolumentos, sendo os fundos, ao fim dos
seis anos de duração do preceptorado, garantidos vitaliciamente em
terras, casas ou outros bens a serem comprados na França por
determinação do beneficiário. E para dourar ainda mais a oferta,
um magnífico palacete.
D’Alembert
é um homem pobre. Humilde e, de certa forma humilhado, pois é um
bastardo. Vive ainda na casa da ama que o criou, quando criança, com
os parcos rendimentos das pensões de membro das Academias de
Ciências e de Letras e o que sobra da venda dos volumes da
Enciclopédia. Tem ainda uma pensão de 1.200 libras anuais, que o
imperador da Prússia lhe concedeu. Apesar disso, não se rende, e os
filósofos passam a explorar ao máximo a repercussão dessa troca de
correspondência. Voltaire escreve a D’Alembert uma carta
certamente destinada à publicação: “Parece-me que se certos
pedantes atacaram a filosofia na França, não se saíram bem, e que
ela fez uma aliança com as potências do Norte. Esta bela carta da
imperatriz da Rússia bem lhe serve de vingança. Assemelha-se à
carta que Felipe escreveu a Aristóteles, com a diferença de que
Aristóteles teve a honra de aceitar a educação de Alexandre, e que
o senhor tem a glória de recusá-la.” E lança muitos elogios a
Catarina. D’Alembert responde no mesmo tom: “Começo a crer, meu
caro e ilustre mestre, que o fanatismo pode ter o mesmo destino que o
Império Romano, sendo destruído pelos tártaros. Os soberanos da
zona glacial darão esse grande exemplo aos príncipes das zonas
temperadas; e Fontenelle teria dito a Catarina que ela está
destinada a ser a aurora boreal da Europa (...) No sul, a filosofia
perseguida, vilipendiada no teatro; no fundo do norte, uma princesa
que a protege e cultiva.”
Nesse
ambiente festivo chega ao fim a Guerra dos Sete Anos, durante a qual
a Prússia de Frederico, aliada à Inglaterra, enfrentou uma poderosa
coligação de nações que incluía França, Áustria, Rússia,
Saxônia, Suécia – e não se rendeu, graças ao gênio militar e à
ousadia de seu imperador. D’Alembert pode, então, cumprir a
promessa feita a Frederico de visitá-lo em Berlim. A primeira reação
do filósofo, ao chegar, é de deslumbramento: “Enfim pude vê-lo,
esse grande e digno rei, ainda mais alto que a idéia que dele
façamos (...) Não posso expressar o sentimento que experimentei ao
vê-lo: meus olhos se encheram de lágrimas.” E Badinter relata:
“Frederico é todo encantos: cuidados, simplicidade, inteligência.
D’Alembert parece surpreso e comovido por ser tratado quase como um
igual pelo rei e por seus irmãos. Ignorado e mesmo desprezado pelo
rei da França, maltratado pelas autoridades, percebe-se que tem
dificuldade de acreditar no que está vendo: jantar durante três
horas com Frederico (que geralmente permanece apenas meia hora à
mesa), longas conversas particulares, nas quais se fala de tudo sem
formalidades, inclusive de filosofia e política, passeios a dois...
O maior guerreiro da Europa, o monarca mais brilhante da época,
seduz o filósofo oferecendo prodigamente seu tempo e seu interesse.
Trata-o como amigo, quase como se fosse da família, quando viajam
juntos para Potsdam. Os dois hospedam-se por alguns dias na
residência do duque e da duquesa de Brunswick – ela é irmã do
rei – e o cumulam de todos os sinais possíveis de bondade.”
A
descrição, aqui, é do próprio D’Alembert: “Não há
manifestação de boas-vindas com que não me tenham favorecido. A
duquesa me instalou para jantar e cear à mesa de frente para ela e
para o rei, seu irmão. Havia nesse jantar apenas a família ducal, o
rei e o príncipe da Prússia com seu preceptor.” Segue a descrição
de Badinter: “D’Alembert fica deslumbrado e trata de mostrar todo
o brilho de que é capaz – e Deus sabe que não é pouco – para
seduzir os anfitriões. Era um encantamento que quase apagava a
diferença de posições. Quando vem a ser convidado a dançar pelas
próprias princesas – o que ele declina --, Jean Le Rond quase
chega a esquecer que é um bastardo. Com toda evidência, está
vivendo momentos inesquecíveis. Inimagináveis na França.”
Mas
afinal, por que tanta gentileza? Simples: há mais de dez anos
Frederico sonha com D’Alembert na presidência da sua Academia de
Berlim. Mesmo durante a guerra, não desistira desse sonho, que agora
tentava concretizar: D’Alembert personifica ao mesmo tempo o
cientista e o filósofo, o progresso e a sabedoria, gênio matemático
e fundador da Enciclopédia.
“Tornou-se assim presa ainda mais desejável para o monarca
prussiano, que sonha modernizar seu país e introduzi-lo na era do
Iluminismo”, resume Badinter. A descrição das manobras dos dias
seguintes, já em Berlim, do rei tentando conseguir a concordância
do convidado em assumir aquele papel, e deste tentando se esquivar,
sem causar descontentamento, é fascinante. Eis um pequeno exemplo:
“O monarca leva a generosidade a ponto de dizer que ‘faço bem à
sua alma e que sentirá muita falta quando não me tiver mais’.
D’Alembert teria respondido que o destino de cada um é que os
afastava: ‘O seu é ser rei e o meu é ser livre’. Enfim, toma a
decisão: numa carta breve, pede dispensa ao rei para voltar a Paris,
e Frederico dá sua autorização, embora com tristeza, e garante: o
lugar de presidente de sua Academia continua esperando por ele.
O fato é
que mais e mais os filósofos vão se envolvendo com os monarcas, e
estes com os filósofos, mas trata-se sempre de um debate de idéias,
enumeração de princípios. Quando Diderot, numa longa estada na
corte de Catarina, começa a dar palpites sobre ações de governo, é
prontamente colocado em seu devido lugar. Eles têm a sua grande
oportunidade quando o jovem duque Fernando sobe ao trono do ducado de
Parma: por vontade da mãe, o infante, desde os 6 anos, foi entregue
aos cuidados de um educador francês, Kerálio, matemático e
engenheiro, admirador de d’Alembert, um homem de cultura, aberto às
manifestações mais ativas do Iluminismo. Um ano depois, Condilac
vem juntar-se a ele na tarefa de preparar o infante para governar.
Ao chegar ao trono prematuramente, o jovem dá dois sinais
alentadores: deixa-se inocular, ou seja, vacinar-se contra a varíola,
uma grande demonstração de coragem física e moral, pois essa
prática recomendada pelos cientistas e pelos filósofos era
severamente proibida em toda parte pelos governos, na França
principalmente. E pretende continuar estudando.
Para
azar dos filósofos, entretanto, as manhas da política levam o jovem
príncipe a se casar com a filha da imperatriz da Áustria, Maria
Amélia, cinco anos mais velha do que ele, mal-educada, caprichosa,
autoritária e agressiva. Registra Badinter: “Dotada de forte
sensualidade e supersticiosa, ela logo ganha ascendência sobre o
marido, fraco e pueril, dividido entre suas (dela) pulsões sexuais e
sua carolice. Expulso de Parma, Keralio chega a Paris e relata para
os amigos: “Eu esperava um pouco do infante, duque de Parma,
considerando-se a boa educação que teve; mas onde não há alma, a
educação nada pode fazer. Sou informado de que esse príncipe passa
o dia encontrando-se com monges, e que sua mulher austríaca e
supersticiosa seria quem manda. Oh pobre filosofia! Que será de ti?”
Informa Badinter: “Dissimulado, preguiçoso, curtido numa devoção
pueril, o duque acreditava na ação milagrosa das relíquias e
transformara seu gabinete particular numa espécie de oratório
recoberto de imagens de santos e mártires!” Alguns anos depois foi
publicado o Curso de
estudos de Condilac
para o príncipe de Parma e Diderot fez um comentário cruel: “Esta
excelente obra de um excelente professor (...) fez apenas, no
entanto, um aluno néscio”.
Uma última
boa notícia parece vir, quem diria, da França. A morte de Luís XV
leva ao trono Luís XVI, de apenas 20 anos. O gabinete é formado por
um político veterano, Maurepas, 73 anos, “que sabe ser necessário
proceder a uma espetacular ruptura com o governo anterior”. Para os
filósofos, auspiciosa será a nomeação de Turgot para o Ministério
da Marinha. Isso provoca um rebuliço entre filósofos e economistas:
pela primeira vez um dos seus chega ao coração do poder. Logo
depois, vai também para o Ministério, Malesherbes, aquele mesmo que
no passado, como censor, havia escondido na própria casa os
originais da Enciclopédia que estava encarregado de apreender e
destruir. Os inimigos não se deixam enganar. A senhora du Deffand
assim descreve o Ministério: “De nossos três ministros o que se
diz é: Turgot não duvida de nada, Malesherbes duvida de tudo e
Maurepas zomba de tudo”. O novo governo adota medidas pouca coisa
mais liberais, mas o suficiente para provocar reações e distúrbios.
Dentro do governo há sérias divergências políticas. Abre-se uma
guerra entre o governo e o Parlamento. As reformas são aprovadas,
mas com elas o governo não tem futuro; ameaçam, de uma só vez, os
privilégios do clero, dos grandes proprietários, das corporações.
Turgot fica sozinho para enfrentar a batalha, mas não chega a
completar dois anos no poder.
A queda de
Turgot acontece no mesmo momento em que chega ao fim a experiência
de Diderot na Rússia. Os monarcas deixam claro que não precisam dos
filósofos para tomar suas decisões. Assiste-se a uma espécie de
recuo de um mundo intelectual que envelhece e já perdeu boa parte de
sua força criadora. Fecham-se os salões onde se conheceu a glória
da Enciclopédia. “Só a Academia de Ciências”, registra
Badinter, “passa por uma autêntica renovação, com os trabalhos
de Lavoisier, Laplace e Monge. Mas já não estamos na época feliz
da década de 1740, quando as matemáticas e a física estavam na
moda. As ciências tornaram-se coisa de especialistas. Fogem à
competência do público cultivado.”
Na
rodinha dos filósofos já ninguém reconhecia mais Frederico como um
dos seus, nem Diderot mantinha sua adoração a Catarina. Registra
Badinter: “Dividido entre o dever de gratidão pessoal em relação
à benfeitora e a exigência de verdade do filósofo para consigo
mesmo, Diderot tratou de se safar como possível. Na impossibilidade
de acusar Catarina, investiu contra o despotismo esclarecido em geral
e contra Frederico em particular. Devemos agradecer-lhe por ter
oferecido a seus leitores a crítica mais ácida de um tipo de poder
que a maioria dos representantes do Iluminismo aplaudia vinte anos
antes. Sem querer, ele ia ao encontro de seu velho amigo-inimigo
Rousseau, autor do Contrato
Social, o peregrino
solitário que sempre evitara a companhia dos grandes e poderosos
para nunca ter de dever-lhes nada.”
Os
soberanos também se desiludiam. “Pouco inclinados a ceder a menor
parcela que fosse de seu poder, não podiam aderir às análises cada
vez mais radicais (...) Seduzindo os homens de letras, eles se
apropriaram sem grande esforço do título de monarca filósofo ou
homem do Iluminismo. Durante algum tempo festejou-se o déspota
esclarecido, tomando-se o cuidado de distingui-lo do tirano, o que
ainda convinha perfeitamente aos reis e príncipes. Quando,
entretanto, se passou a preconizar a igualdade entre os homens e a
soberania do povo, filósofos e monarcas começaram a se olhar de
outra maneira.”
Vale a
pena reproduzir integralmente as três últimas páginas com que
Badinter encerra a sua extraodinária trilogia:
O
retorno de Voltaire a Paris, a 10 de fevereiro de 1778, depois de 28
anos de exílio, assinala ao mesmo tempo o apogeu e o declínio do
reinado do filósofo. Chegando inesperadamente à capital, sem
autorização do rei, ele demonstra que a opinião pública que
contribuiu para formar e na qual sempre se apoiou é uma força que
já agora terá de ser levada em conta. Sua enorme popularidade o
protege do mau humor de Versalhes. Em casa, na rua, na Academia ou na
Comédie-Française, ele é alvo de um entusiasmo assombroso e sem
precedentes na história dos homens de letras. É o que noticia a
Correspondência
Literária: “Não,
o surgimento de uma alma penada, de um profeta, de um apóstolo não
teria provocado mais surpresa e admiração do que a chegada do Sr.
De Voltaire. Esse novo prodígio suspendeu por alguns momentos
qualquer outro interesse; descartou os ruídos de guerra, as intrigas
da toga, as dissensões da corte e até mesmo a grande querela entre
gluckistas e piccinistas. O orgulho enciclopédico pareceu reduzido à
metade, a Sorbonne estremeceu, o Parlamento guardou silêncio, toda a
literatura ficou abalada, toda a Paris tratou de acorrer aos pés do
ídolo”.
Esquecidas
as ciumeiras, as disputas e as rivalidades, todo mundo que tem alguma
importância na capital disputa a oportunidade de prestar-lhe
homenagem. Por gratidão pela ‘infinidade de obras sublimes em
todos os gêneros da literatura’, mas também por ter assumido
‘corajosamente a defesa da inocência oprimida’.
Para se
ter uma idéia da glória de Voltaire, será necessário ler o relato
do dia 30 de março na Correspondência Literária:
‘Esse
ilustre velho apresentou-se hoje pela primeira vez na Academia e no
espetáculo (...) Sua carruagem foi seguida nos pátios do Louvre
por uma multidão ansiosa por vê-lo. Ele encontrou todas as portas,
todas as avenidas da Academia assediadas por uma multidão que só
lentamente se abria a sua passagem, imediatamente se precipitando
sobre seus passos com aplausos e aclamações as mais variadas. A
Academia veio ao seu encontro até na primeira sala, honra que jamais
prestou a qualquer de seus membros, nem mesmo aos príncipes
estrangeiros que se dignaram assistir a suas assembléias (...) As
homenagens que o senhor de Voltaire recebeu na Academia foram apenas
o prelúdio das que o esperavam no teatro da nação. Sua caminhada
desde o velho Louvre até as Tulherias foi uma espécie de triunfo
público. Todo o pátio dos príncipes, que é imenso, até a entrada
do Carroussel, estava cheio de gente; não havia muito menos no
grande terraço do jardim, e essa multidão era formada por todos os
sexos, todas as idades e todas as condições. Do ponto mais distante
de onde se podia distinguir a viatura, elevava-se um grito de alegria
universal; as aclamações, os aplausos, os entusiasmos redobravam à
medida que se aproximava; e quando se pôde vê-lo, esse velho
respeitável acumulando tantos anos e tanta glória, quando foi
possível vê-lo descer, apoiado em dois braços, o enternecimento e
a admiração chegaram ao cúmulo. A multidão tentava aproximar-se
dele; e tratava também de defendê-lo dela mesmo. Todas as balizas,
todas as barreiras, todas as sacadas estavam cheias de espectadores,
e, detida a carruagem, já se subia na imperial e mesmo nas rodas
para contemplar a divindade mais de perto.
‘Na
mesma sala, o entusiasmo do público, que não se julgava possível
ser capaz de ir ainda mais longe, pareceu redobrar quando (...) o
senhor Brizard trouxe uma coroa de louros que a senhora de Villette
depositou na cabeça do grande homem, mas que ele logo retirou,
embora o público o instasse a mantê-la, com aplausos e gritos que
repercutiam em todos os recantos da sala com extraordinário
estrépito. Todas as mulheres estavam de pé. Havia ainda mais gente
nos corredores que nos camarotes (...) Esse entusiasmo, essa espécie
de delírio universal durou mais de vinte minutos, e não foi sem
alguma dificuldade que os comediantes finalmente conseguiram dar
início à peça. Era Irène que se representava pela sexta vez.
Nunca essa tragédia foi tão bem interpretada, nunca foi mais
atentamente ouvida, nunca terá sido tão aplaudida. Caindo a
cortina, os gritos e aplausos recomeçaram com mais vivacidade que
nunca. O ilustre velho levantou-se para agradecer ao público, e no
momento seguinte se pôde ver num pedestal, no meio do teatro, o
busto desse grande homem, e todos os atores e atrizes dispostos em
meia-lua, junto ao busto (...) de tal maneira que o teatro, nesse
momento, representava perfeitamente uma praça pública onde se fosse
erguer um monumento à glória do gênio (...) O nome de Voltaire
ecoava de todas as partes com aclamações, sobressaltos, gritos de
alegria, de gratidão e de admiração. A inveja e o ódio, o
fanatismo e a intolerância só ousaram rugir em segredo; e pela
primeira vez, talvez, se pôde ver a opinião pública na França
desfrutar espetacularmente todo o seu império.’
E
Diderot conclui: “Toda uma nação prestou-te homenagens que
raramente seus soberanos obtiveram dela. Recebeste as honras do
triunfo em tua pátria, a capital mais esclarecida do universo; quem,
dentre nós, não daria a vida por um dia como o teu?”
Dois
meses depois, Voltaire morre, recusando todas as retratações que os
padres queriam arrancar-lhe. Firme em suas convicções, partiu como
teísta, e não como cristão.
Semanas
depois, chega a vez de seu velho amigo-inimigo Rousseau entregar a
alma em Ermenonville. Logo seriam seguidos por D’Alembert e
Diderot. As luzes do século vão-se apagando uma após outra,
deixando para trás os fundamentos da modernidade e, particularmente,
as paixões intelectuais.
A morte
de Voltaire encerra a história do surgimento dessas grandes paixões.
Não que elas tivessem sido totalmente ignoradas antes do século 18.
Mas o desejo de glória, a exigência de dignidade e a vontade de
poder são estreitamente dependentes do nascimento de uma opinião
pública. Quanto mais esta ganhou força, mais se pôde assistir à
exacerbação da primeira e da terceira paixões. O desejo de glória
e a vontade de poder parecem ter-se desenvolvido em detrimento da
exigência de dignidade. No século 18, esta dizia respeito à
independência do filósofo em relação aos grandes. Em outras
palavras, à recusa da cortesania. Hoje, a maior força é a opinião
pública. É ela, e somente ela, que outorga glória e poder, por
obra e graça dos meios de comunicação. Os intelectuais mudaram de
senhor, mas não de escravidão. Serão capazes, para se libertar, de
abrir mão de tão doces paixões?
Surpreendentemente,
Elizabeth Badinter encerra aí seu trabalho, num esforço para
resistir, quem sabe, à oportunidade de saudar mais adiante a
coroação daquela nova época que surgia com o nascimento da opinião
pública. Apenas 11 anos depois da entrada triunfal de Voltaire em
Paris, o povo da cidade tomou de assalto a Fortaleza da Bastilha,
símbolo do poder discricionário do soberano, e deu início a uma
das duas revoluções que mudariam drasticamente a história da
humanidade. À sua frente não estavam os Voltaire, Diderot,
D’Alembert, Rousseau, mas os Danton, Robespierre, Marat, Mirabeau.
Intelectuais, todos eles, não filósofos, mas políticos, que não
pretendiam influenciar o poder dos soberanos, mas tomar posse dele e
controlá-lo com as próprias mãos.
Desde
então, todas as constituições que passaram a reger a vida das
nações democráticas, em todo o mundo, começam com esta frase
significativa: “Todo o poder emana do povo e em seu nome será
exercido”. Sem dúvida a coroação de quanto os filósofos
pensaram e elaboraram, ao longo daquele fantástico Século das
Luzes. De uma só vez, eles tomaram posse definitiva da glória, da
dignidade e do poder.