sábado, 7 de fevereiro de 2015



No tempo em que as celebridades



aprendiam Matemática


No começo dos anos 1980 a intelectual francesa Elizabeth Badinter brilhou no Brasil, primeiro nas páginas amarelas de Veja, depois nas de Cláudia, defendendo uma idéia original que chamou “o mito do amor materno”. Agora, tendo já assumido o título de filósofa, brinda-nos com um livro fascinante:  As paixões intelectuais. São três portentosos volumes – Desejo de glória, 1735-1751; Exigência de dignidade, 1751-1762; e Vontade de poder, 1762-1778. Uma edição impecável da Civilização Brasileira.

Ela nos conta como, no século 18, o Século das Luzes, como é conhecido, as relações e rivalidades entre os intelectuais foram sensivelmente alteradas pelo aparecimento de uma nova força – a opinião pública. E como o conhecimento, desde então, tornou-se sinônimo de prestígio aos olhos da burguesia ascendente, que tomaria o poder da aristocracia logo adiante, na grande revolução que marcou a passagem do século e mudou definitivamente a vida em sociedade. Vamos a uma longa citação, para começo de conversa: “Só com o advento do humanismo e da revolução intelectual do Renascimento o saber deixaria de ser apanágio exclusivo dos teólogos. A renovação científica é essencialmente obra de leigos que lançam por terra ao mesmo tempo o cosmos da Antiguidade e o cabresto escolástico. No século 17, Descartes, Newton, Huygens, Fermat e Roberval lançam os princípios da ciência moderna, que dispensa a teologia. Com isso propiciam numerosas descobertas científicas e técnicas que despertam o interesse do poder público. O rei e seus ministros dão-se conta das vantagens que podem advir do desenvolvimento das ciências – principalmente do progresso da Astronomia, que facilita a navegação, e da Ótica, cujos instrumentos mudam a visão humana. O saber torna-se fonte de riquezas e glória. O Estado quer agora transformá-lo em propriedade sua.”

        Fique claro que estamos, aqui, falando da França. É o governo monárquico que propicia a criação das Academias – a Francesa, criada por Richelieu, em 1634; a de Inscrições e Belas Letras, fundada por Colbert, em 1663; e a mais recente, criada também por Colbert em 1666, a Real das Ciências. Com elas, a monarquia estimula e valoriza a inteligência, criando uma espécie de comunidade que pouco a pouco tomará consciência de suas especificidades, de seus interesses e de seu poder. É o que se chamou, então, “a República das Letras”. A Academia de Ciências é o centro dessa nova era, e integrá-la é o sonho de todo intelectual. Vamos a outra citação: “Fonte de descobertas e riquezas para o reino, ela é o símbolo do progresso das ciências e das artes, logo, de tudo que contribui para a felicidade da humanidade (...) Mais que suas antecessoras, suscitou a cobiça dos intelectuais e a admiração de um público nascente, que se ampliou consideravelmente no século 18. O Iluminismo fascina, e esta Academia é seu principal depositário.”

        São esses intelectuais, portanto, que com o seu saber, brilham e se destacam na sociedade. Para eles, quase tão importante quanto ter os seus trabalhos reconhecidos na Academia, é tê-los também reconhecidos nos grandes salões onde se desenrola a elegante e fofoqueira vida social do período. É o matemático e astrônomo Pierre-Louis Moreau de Maupertuis quem melhor caracteriza essa ambição – “atormentado pelo desejo da celebridade, ele é o primeiro a romper o tabu herdado do passado que exigia discrição e modéstia. Protagonista de uma grande disputa científica que talentosamente transforma em acontecimento da vida pública, ele não esconde que quer glória, honrarias e dinheiro”.

        Essa grande disputa científica opõe ingleses e franceses, naturalmente. Em Londres, Isaac Newton desenha a Terra achatada nos pólos e alargada no equador; em Paris, Descartes, Jean Picard  e a família Cassini, de origem italiana, sustentam que ela é alongada nos pólos e estreita no equador. Limão ou tangerina?, perguntava-se na época. Para esclarecer a discórdia, a Marinha inglesa envia três acadêmicos ao equador, onde mediriam um eixo do meridiano terrestre. Enquanto os mestres ingleses ainda navegam, Maupertuis apresenta mais uma dissertação na Academia francesa, e defende o envio de outra expedição, mas às proximidades do Pólo Norte, a fim de confirmar ou desmentir as descobertas dos ingleses. Audacioso, ele não teme contrariar a opinião da maioria dos seus pares, que torcem pelo limão e os patrícios Cassini – tendo estudado na Inglaterra, ele é um raro francês a apoiar a teoria de Newton. Naturalmente, será o chefe dessa expedição.

        Uma frase de Badinter define o que aconteceu daí por diante: “Ninguém imaginava então que a expedição chefiada por Maupertuis poria fim a essa bela unanimidade de fachada (pelo limão); que os acadêmicos se enfrentariam com uma violência até então desconhecida; e que o orgulho de uns e a suscetibilidade de outros, exacerbados pelo olhar do público, transformariam um debate científico em autêntica guerra civil.” O debate sai da Academia, invade os salões elegantes, tanto os da nobreza decadente quanto os da burguesia ascendente. Suas proprietárias – a marquesa De Lambert, a Senhora De Tencin, a Senhora Geofrey, a Senhora Du Châtelet, entre outras – disputam avidamente a presença dos combatentes intelectuais em suas reuniões semanais. E Maupertuis, na condição de primeiro newtoniano francês, e portanto grande vencedor, mas também sedutor e bom de papo, é o mais ambicionado. Embora seja um amante grosseiro e volúvel, as mulheres o assediam.

        Essa opinião pública que se reúne nos salões, mas se esparrama também pelos restaurantes, cafés, os locais menos elegantes onde se reúne a pequena burguesia, não quer apenas admirar os guerreiros – deseja entender a disputa. E assim torna-se moda estudar ciência, Matemática sobretudo. O cúmulo do chique é estudar com Maupertuis, naturalmente, mas muitos outros físicos, matemáticos, astrônomos da Academia mantêm seus cursos, anunciados regularmente nas páginas do Mercure, o periódico que todos lêem. Alexis Clairaut, um menino prodígio da Matemática, modesto, companhia agradável, bem ao contrário de seu mestre Maupertuis, não faz o mesmo sucesso no mundo social. Explica a Senhora De Graffigny: “A parte a Geometria, ele é quase um tolo. É tão pouco do mundo, fala de maneira tão sem graça, que é impossível divertir-se com ele. É um bom rapaz, bom caráter, pelo que dizem, mas não passa disso.” Não é o que pensa a Senhora Du Châtelet, que sempre o requisita: “Alegre,  encantador, e tão bom professor de Matemática.”

        Talvez esta seja a característica mais bizarra daquela sociedade efervescente: enquanto a gente comum, e até mesmo as grandes cocotes, tentam desesperadamente entender a ciência, os acadêmicos batalham por se tornarem menos sisudos, companhias agradáveis, finos praticantes da melhor etiqueta. Afirma Badinter: “O interesse pelas ciências, e de maneira mais geral o desejo de saber e compreender, é um dos fenômenos marcantes do século 18. Ele vai de par com a proliferação do número de jornais, o desenvolvimento das bibliotecas públicas e dos gabinetes de leitura em Paris e na província, o desenvolvimento das academias de província, o aumento da publicação de livros e do lugar ocupado pelas ciências nas grandes publicações, como o Journal des Savants, o Mercure e o Journal de Trévoux.”

        Começam a aparecer, então, os manuais, publicações preparadas pelos acadêmicos para instruir o grande público. Elementos de Geometria é um dos primeiros, escrito pelo jovem Clairaut, e faz estrondoso sucesso. Diz o Journal des Savants: “Este acadêmico versado nas mais sublimes especulações faz com que a Geometria mais simples tome hoje um novo caminho e por assim dizer um novo impulso, fazendo com que seja lida pelas pessoas (...) que sentem por ela uma espécie de repugnância.” As fofocas dos salões garantiam que se tratava de mera redação das aulas que ele havia dado à Marquesa Du Châtelet, mas Clairaut defendeu-se elegantemente: Emilie já sabia muito mais quando ele começou a orientar seus estudos.

        O abade Noillet é outro menino prodígio que encanta as senhoras mundanas. Constroi com as próprias mãos os aparelhos de que necessita, faz pesquisas com eletricidade, aperfeiçoa-se em Física na Inglaterra. E é outro destaque nos salões: a Senhora Du Châtelet, que deseja ir além da Matemática, encomenda-lhe os aparelhos necessários para petrechar seu próprio laboratório. É ela quem relata, numa carta: “Ele me diz que só se vêem em sua porta carruagens de duquesas, de pares e de belas mulheres.” Mas não é apenas a grande dama que o elogia. O Journal dês Savants garante:  “Eis então que a boa filosofia se apresta a fazer fortuna em Paris. Seu segredo: instruir sem entediar. Os homens, as senhoras e os alunos que ainda não fizeram a sua filosofia podem assistir com grande proveito, pois ele sabe evitar os erros populares, os temores ridículos, o falso maravilhoso.”

        O comentário é de Badinter: “O abade fazia da Física experimental um divertimento na moda.” Ele anuncia seus cursos no Mercure. São seus alunos, entre muitos outros, o duque de Penthièvre e o filho do rei da Sardenha. Leciona na universidade, “onde, apesar da época das férias e das colheitas, aparecem diariamente pelo menos duzentas pessoas de todas as idades, de ambos os sexos e de todas as condições.” O químico Guillaume-François Rouelle também anunciava no Mercure, e também fazia sucesso. Le Guay de Prémontval, aparentemente, não precisava ganhar dinheiro: seus cursos, também anunciados no Mercure, são dados três vezes por semana, e de graça. Logo as três aulas semanais já não bastam, tamanha é a procura: ele passa a ensinar também nos sábados e domingos.

        Badinter assim conclui essa parte de sua obra: “O fato é que a moda dos cursos públicos, muito bem lançada no início da década de 1740, não mais cessaria até a Revolução.”


A perda e a reconquista do respeito


        Estamos agora em 1751. Escreve Badinter: “Efêmera, às vezes amarga, a glória do intelectual deve estar sendo sempre reconquistada. E essa reconquista é cada vez mais difícil. O intelectual é espreitado pelos pares e o público adora destruir o que ele venerou. É preciso ter o gênio e o temperamento de Voltaire para se impor a todos durante seis décadas.”  Luís XIV havia morrido e com ele a moda de o rei distribuir renome e pensões, em troca de submissão a suas regras e lisonjas a sua pessoa. Luís XV não dá a mesma importância ao mundo das letras ao mesmo tempo em que surge uma nova geração de intelectuais. Rousseau, Diderot, D’Alembert e outros com eles ignoram a corte e tanto suas vantagens quanto suas obrigações: querem escrever com liberdade, passando ao largo da censura do Estado monárquico e da Igreja. “Liberdade, verdade e pobreza são as três palavras que os homens de letras deveriam ter sempre em mente”, proclama D’Alembert. Para que servem a glória, os títulos, a riqueza se o preço a pagar é o compromisso e a dependência?

        Rousseau, que vive de copiar pautas musicais, foi o que mais se aproximou dessa condição, recusando sempre fazer qualquer concessão que comprometesse sua liberdade. Isso o obrigou a uma vida de limitações, chegando a abandonar cinco filhos; mesmo Voltaire, que era rico, precisou exilar-se 24 anos para manter sua liberdade. A maioria, porém, teve de fazer concessões em todos os terrenos. Muitos, o próprio Voltaire inclusive, cederam à tentação da Prússia, para onde os convidava o imperador Frederico II, acenando com dinheiro e liberdade de pensar e escrever, esta um bem precioso porque desconhecido na França. Ali não havia livros proibidos e queimados, nenhuma ameaça contra seus autores – o rei, que se presumia filósofo, sempre teve como ponto de honra proteger os escritores perseguidos pela Igreja e pelos padres. Esta é a imagem que ele passa ao mundo, e muitos foram atraídos por ela.
        A descrição das noites no castelo de Frederico, em Potsdam, a vinte quilômetros de Berlim, pode ser fascinante. “Potsdam é uma ilha de silêncio, liberdade e recolhimento (...) lugar de meditação e trabalho sem entraves para todos aqueles que, como Voltaire, têm obras a escrever. Além disso, é ali que Frederico reúne à noite seu grupinho de ‘belos espíritos’ para ceias íntimas que primam pela alegria e liberdade de expressão (...) Todos são excelentes conversadores afeitos à provocação e aos gracejos, filósofos na alma, decididamente deistas, quando não ateus, como Frederico. É uma verdadeira competição para ver quem sai com as sátiras mais alegres, as graçolas mais iconoclastas, as farsas mais pesadas. Em certas ocasiões, de acordo com o humor de Frederico e o calor de seus convivas, nenhuma mesa real da Europa se equipara a esta. Em nenhum outro lugar se alternam, como aqui, debates filosóficos e risadas libidinosas. Na ausência de damas – o que era de se esperar, tratando-se do rei – tudo é permitido”. Mas logo vem a advertência: “No palácio do déspota, contudo, por esclarecido que seja, a licença tem limites que variam ao sabor de seus caprichos. A igualdade é um mito que não engana ninguém. O rei é um cínico, um perverso e um dominador que, sob a capa da liberdade, exige absoluta submissão. Um sinal de familiaridade deslocado ou um comportamento que desagrada podem levar a uma desgraça mais ou menos prolongada (...) Além disso, ninguém pode deixar o reino de Frederico sem sua autorização.”

        Todos os que foram viver na Prússia acabaram percebendo, a duras penas, que o imperador era um déspota tão sovina quanto cruel, sempre que o contrariavam.  Sobre ele escreveu o historiador inglês lord Macaulay, quando assumiu o trono: “Ninguém alimentava a mais leve suspeita de que um tirano de extraordinários talentos políticos e militares, e de uma atividade ainda mais extraordinária, sem medo, sem fé e sem compaixão, havia subido ao trono.” Talvez a mais dura lição tenha sido aprendida pelo grande Voltaire, que ali fora recebido como um deus: nomeado camareiro, recebeu uma patente vitalícia que lhe assegurava uma pensão de oitocentas libras esterlinas por ano, os cozinheiros reais e os cocheiros foram postos a sua disposição. O imperador agora pretendia ser assim chamado: “Frederico, rei da Prússia, margrave de Brandenburgo, duque soberano da Silésia, possuidor de Voltaire”.  A lua de mel não durou muito e depois de uma série de desentendimentos, o filósofo decidiu voltar para Paris. Ao viajar, esqueceu de devolver o maço de papéis com versos escritos por Frederico, e a vingança foi terrível: quando chegou a Frankfurt, já na fronteira, foi preso, tomaram-lhe os versos, deixaram-no preso durante doze dias, a sobrinha que ali fora esperá-lo foi arrastada na lama pelos soldados, tomaram-lhe o dinheiro que levava.
        Voltaire estava agora num impasse: não podia voltar a Berlim, nem era desejado em Paris, onde sua entrada fora proibida. Foi obrigado a refugiar-se na Suissa. “Ali – escreveu Macaulay – livre de todos os laços que até então o tinham prendido e pouco tendo a temer de Cortes e Igreja, começou a sua longa guerra contra tudo o que, para o bem ou para o mal, tinha autoridade sobre os homens (...) Muitas vezes saboreou um prazer caro à parte melhor de sua natureza, o prazer de pugnar pela inocência que não tinha outro apoio, de fazer reparar danos cruéis, de anatematizar a tirania sentada em lugares elevados. Teve também a satisfação, não menos grata à sua insaciável vaidade, de ouvir aterrorizados capuchinhos chamar-lhe o Anti-Cristo.”

        Em Paris, o grande sucesso agora é a Enciclopédia, medido pelo vigor da polêmica que provoca. No início do verão, só se falava do Discurso Preliminar, escrito por D’Alembert, e logo foram descobertos os artigos de Dumarsais sobre a gramática, os inovadores textos sobre as artes e ofícios de Diderot, os artigos científicos. A senhora De Bonneval, que encara com bom humor todos os livros que fazem sucesso, põe a circular um epigrama:

“Eis aqui a Enciclopédia;
Felicidade para os ignorantes!
Quantos falsos sábios
Dará à luz a douta rapsódia!...”

Os números iniciais dão conta da ótima recepção: eram 1.625 subscritores  mas precisaram ser impressos 2.075 exemplares do primeiro volume. E logo chovem ofertas de artigos de novos colaboradores potenciais. Diderot e D’Alembert são os criadores e os produtores da novidade. Os grandes, como Voltaire, Montesquieu e Buffon ainda se mantêm distantes, mas não faltam artigos para as edições seguintes. O cavaleiro Jaccourt despontava como o “soldadinho fiel” da nova empreitada: escreveu oito artigos para o segundo volume, mas chegou a produzir entre um quarto e a metade dos seis volumes seguintes e a metade dos dois últimos. Algo como dezessete mil artigos, abarcando temas como botânica, política, história da arte, geografia, física, zoologia. O barão D’Holbach, alemão, escreveu para os volumes II a XVII 430 artigos assinados e centenas de outros, anônimos, sobre mineralogia, metalurgia e física.  A residência do barão, por sinal, chamada “sinagoga” e “café da Europa”, foi o laboratório da Enciclopédia, local de decisões sobre sua orientação filosófica, opções ideológicas e política geral.

        A enorme repercussão do primeiro volume, devida sobretudo ao Discurso Preliminar, torna D’Alembert de repente o grande destaque de Paris. Mas já no outono começa a tempestade: os inimigos dos filósofos fazem a leitura e a releitura do Discurso e dos artigos do primeiro volume e percebem que quase todos escapam da ortodoxia. Ainda assim, nada perturba os comandantes do trabalho. Se o Journal de Trévoux, dos jesuítas, ataca o Prospectus que anuncia o nascer da grande obra, não chega a preocupar, a resenha do Journal des Savants é um alerta: “Somos obrigados a advertir que esse trabalho tem defeitos e contém inclusive coisas perigosas (...) O autor supõe que as sensações são a única origem das idéias (...) O sistema de Locke é perigoso para a religião  (...) Caberia indicar nesse prefácio um exagerado laconismo no que diz respeito à religião.”

        A trajetória da Enciclopédia é atribulada. Foi proibida em 1752 e 1759, devido a artigos que discutiam a religião. Baixam-se ordens de prisão contra os autores, dois abades, e o próprio Diderot é ameaçado. Um observador amedrontado lamenta: “Desgraçados sejam os inimigos dos jesuitas! A Inquisição francesa vê aumentarem seu alcance e seu poder.” Aqui, no entanto, é preciso registrar: a França, como dizia Manoel Bandeira de Pasárgada, é outra civilização. A Inquisição é poderosa, como em toda parte, mas não consegue acender fogueiras – ela tem de disputar o favor da opinião pública, contra os filósofos, para impor seus objetivos, mas estes nem de longe se assemelham aos obtidos em Espanha e Portugal. Um exemplo dessas diferenças: encarregado de apreender todos os manuscritos dos próximos volumes, o chefe da censura Malesherbes secretamente alerta Diderot, que lamenta: “O que o senhor vem de anunciar me deixa terrivelmente triste; eu jamais terei tempo de transferir todos os meus manuscritos, e aliás não é fácil encontrar em 24 horas pessoas dispostas a cuidar deles e que possam mantê-los em segurança em suas casas.” Então acontece o que seria inacreditável, se não estivéssemos em França: o censor responde: “Mande todos eles para a minha casa, pois aqui não virão buscá-los”. A filha de Diderot, que conta o episódio, informa que o pai “enviou metade do seu escritório para a casa daquele que ordenara a busca”.

        A linguagem da época confunde filósofo com cientista, mas a diferença já começa a ser percebida. Diderot é um filósofo, conhece as agruras de batalhar por idéias, já esteve na prisão por causa delas; D’Alembert, ao contrário, é um matemático que só agora começa a se aventurar pela filosofia e acaba de aprender: as audácias do filósofo custam mais caro do que as do cientista. Diz Badinter: “Este se expressa livremente, aquele só pode pensar com autorização; além do mais, a autoridade que julga já não é a razão, mas a ideologia, vale dizer, as crenças, os preconceitos, os interesses. Dura revelação para um homem habituado a manusear números e curvas.”  Esse homem começa a tomar consciência de seu novo lugar na sociedade e, apesar de muito ocupado com o trabalho na Enciclopédia, esboça uma espécie de “manifesto dos intelectuais”, em que procura traçar os contornos de um estatuto e de uma ética intransigentes, “uma exortação à independência e à dignidade, qualquer que seja o preço a pagar”, registra Badinter. Os enciclopedistas não são ameaçados apenas pela violência física contra sua obra e suas pessoas – enfrentam também ameaças intelectuais, pois a Inquisição, se não tem fogueiras, tem pensadores de peso e qualidade para contestar suas idéias. Por exemplo: eles são acusados de numerosos plágios, a maioria dos quais comprovada. A campanha desencadeada pelos jesuítas por meio do Journal de Trévoux causa estragos, mas Badinter observa: “Os seis longos artigos dedicados ao primeiro volume da Enciclopédia configuram um crescendo crítico tanto mais contundente por ser ao mesmo tempo rigoroso e cortês. Os dois primeiros artigos de outubro e novembro, frequentemente elogiosos, asseguram a objetividade dos subseqüentes. Já são encontradas, é verdade, algumas observações sobre os erros de ortografia, os esquecimentos, a ausência de remissão às fontes consultadas, mas fica em geral a impressão de que os autores são criticados por simples negligências. O artigo de dezembro, ainda moderado, é mais devastador. Ele examina cada artigo baseado em outros trabalhos sem citá-los, como o Dicionário de Trevoux, o Dicionário de Medicina, a Bíblia ou as Instituições astronômicas, de Lemmonier. Mais cruel, ainda, o padre Berthier publica lado a lado o artigo da Enciclopédia e o texto consultado, às vezes sem uma diferença de vírgula.”

        Os dois últimos artigos de fevereiro e março de 1752 continuam a implacável revelação dos plágios e atacam artigos fundamentais do primeiro volume, como Aristotelismo e Autoridade política, e a irreligião que aparece em toda parte. Registra Badinter: “O resultado é constrangedor e as críticas começam a levar a melhor sobre os elogios. Como o meio literário aprecia acima de tudo as críticas virulentas, a notícia se propaga com rapidez, mesmo além-fronteiras. De Potsdam, o marquês D’Argens anuncia a Maupertuis (o matemático francês que ali preside a Academia de Ciências): ‘Foi suspensa a edição da Enciclopédia. Jesuitas, jansenistas, devotos e neutros estão unidos, percebe-se uma fúria generalizada contra esse trabalho no mundo dos carolas (...) Será publicado em Paris um trabalho no qual se revela, pelo que dizem, 1.800 erros dos mais grosseiros nos dois primeiros volumes.’

        A proibição dos dois primeiros volumes pelo Conselho do Rei provoca boatos alarmantes: dizia-se que os autores seriam presos e supliciados e Diderot realmente temeu voltar à prisão. Mas os boatos são apenas boatos  -- nada acontece, e eles decidem lutar pela sobrevivência do dicionário. Graças à benevolência de Malesherbes, o censor, o privilégio de publicação continua de pé. Para levá-la a efeito, contudo, é preciso fazer com que as autoridades confiem na disposição dos redatores em observar as novas regras. Embora pouco transite pela vida social, Diderot procura obter o favor da marquesa de Pompadour, que responde sibilinamente: “Nada posso fazer (...) São os eclesiásticos que os acusam e eles nunca admitem estar errados (...) Todavia, todos me falam bem do senhor. Seu mérito é apreciado; sua virtude, reconhecida (...) Terei o maior prazer em atendê-lo no que for possível.” A mensagem é ambígua, mas Badinter a interpreta: “Oficialmente nada posso fazer, mas não deixarei de falar a respeito com quem de direito”. A promessa foi cumprida, pois alguém fez o registro: “A Senhora de Pompadour e alguns ministros solicitam que D’Alembert e Diderot voltem ao trabalho da Enciclopédia, observando uma reserva necessária no que diz respeito à religião e à autoridade”. É uma vitória amarga; a Enciclopédia parece condenada e em Potsdam Maupertuis chega a sonhar: “Seria uma bela aquisição trazer para cá toda a sociedade enciclopédica (...) e dar continuidade a esse trabalho. Semelhante colônia de refugiados da filosofia reformada seria mais útil que a religião reformada.”

        Aparentemente, a Enciclopédia havia sido destruída, mas pouco depois D’Alembert escreve numa carta que “toda a França deseja que tenha continuidade, a coisa toda parece acalmada e acertada”. E chega a impor condições às autoridades para voltar ao trabalho: uma retratação do Journal des Savants, proibição aos jesuítas de escrever contra o dicionário, a possibilidade de afirmar que “as idéias procedem dos sentidos” e de publicar separadamente, sem nenhuma alteração imposta pela censura, o seu Discurso preliminar. E finalmente, exige a designação de censores razoáveis, “não mais animais embrutecidos”. Deve ter sido atendido, pois os volumes continuaram a ser produzidos e impressos. Só mesmo na França isso seria possível.

        Mas a essa altura, 1757, a tentativa de assassinato do rei Luís XV anuncia tempos difíceis. Fanáticos das mais variadas tendências unem-se contra a Enciclopédia e começa uma fase de severa repressão filosófica. Com sucesso, em boa parte devido à desunião dos próprios filósofos. Amigos não se falam mais, Diderot caiu em descrédito pois uma peça teatral sua é considerada plágio, D’Alembert pretende abandonar a Enciclopédia justo no momento em que vem a público o sétimo volume, unanimemente considerado o melhor de todos. Voltaire, isolado, prega sozinho a união, mas o partido filosófico está em frangalhos, e continua a descer a ladeira. Eis o registro de Badinter: “Só porque um desequilibrado deu um golpe de canivete entre a quarta e a quinta costela de Luís XV, a ordem social vacila (...) o regicida é um monstro atrás do qual alguém se esconde. Nesse período de forte tensão social, no qual a queda-de-braço entre o rei e seus parlamentos encobre uma guerra sem trégua entre jesuítas e jansenistas, cada partido logo trata de atribuir a autoria do golpe ao inimigo. Mal é divulgada a notícia, começam as suspeitas, as denúncias, os acertos de contas.”

        Damiens, o fracassado regicida, é condenado à morte e simplesmente esquartejado e queimado. O horror dessa sentença será tema de debates acalorados, mas os filósofos não têm tempo para se deter no caso do infeliz. Voltaire é o primeiro a pressentir o perigo que ronda os filósofos e adverte D’Alembert: “Como se dá que os fanáticos se apóiem reciprocamente e os filósofos estejam desunidos, dispersos? Trate de reunir o rebanho. Coragem. Temo que Damiens cause muito mal à filosofia.” A Enciclopédia, unanimemente atacada pelos fanáticos, pode tornar-se o bode espiatório. Logo surge um novo jornal, de nome sugestivo: A Religião Vingada, ou Refutação dos Autores Ímpios. Já a folha humorística Cacouacs ridiculariza os filósofos com graça e espírito e faz rir toda Paris. O público aplaude e os filósofos ficam raivosos, a ponto de se desentenderem entre si.
        Apesar de tudo, o sucesso da Enciclopédia continua crescendo: o sétimo volume tem tal repercussão que o número de assinaturas chega a quase quatro mil. Mas há reações importantes por causa do artigo Genebra: na França, porque ele critica o catolicismo, na Suissa porque afirma que os pastores protestantes, embora creiam em Deus, têm mais razão do que fé. Foi escrito por D’Alembert, que o defende apaixonadamente; Diderot não demonstra o mesmo entusiasmo, esquiva-se da responsabilidade e o resultado é trágico: D’Alembert desliga-se da Enciclopédia. Voltaire tenta salvar o empreendimento, “por demais importante para que eles não consigam, unidos, fazer recuar os inimigos”.  Mas o momento é desolador: muitos outros colaboradores pretendem deixar de escrever.

        O ambiente se torna pesado em todo universo intelectual – até nas Academias há um certo ar de acerto de contas, discute-se tudo raivosamente. Voltaire, do seu exílio na Suissa, é o único que luta por recompor a unidade, embora se lamentando: “Os filósofos me deixam furioso, não sabem o que estão fazendo. Estão desunidos e eu preferia ter de lidar com mocinhas de coro de ópera do que com eles; elas seriam mais razoáveis.” E lança-se sozinho ao que será o grande combate de sua vida: a luta contra o fanatismo. Assinala Badinter: “As injustiças e crueldades cometidas pelos homens em nome de Deus levam-no a se apresentar como o campeão da tolerância e da humanidade.” 

        Em 1762, ele toma conhecimento do caso Calas, um comerciante da região de Toulose, protestante, acusado de matar o próprio filho para impedi-lo de converter-se ao catolicismo. Foi um companheiro eventual de jantar que lhe contou, enfatizando os defeitos da instrução do processo, as pressões populares, as incoerências da acusação, a honradez da família e, sobretudo, o fato de Calas sempre proclamar sua inocência, mesmo quando amarrado a uma roda, com os braços e as pernas quebrados a pauladas.Voltaire fica chocado e indignado. Pergunta e responde: “Por que me interesso tanto por esse Calas supliciado? É que sou um homem. Essa terrível aventura desonra a natureza humana, seja Calas culpado ou inocente. Existe certamente, de um lado ou de outro, um terrível fanatismo.”

        Lança-se então numa infatigável investigação pessoal do episódio. Consegue entrevistar os dois outros filhos de Calas, reúne todas as informações possíveis com outros conhecidos do condenado, estuda todas as fontes escritas. Cobra do Parlamento de Toulouse a publicação de todas as peças do processo. Não é atendido, mas confronta as declarações dos advogados com as da família do acusado e se convence: Calas é inocente, o filho suicidou-se. Mas como prová-lo, se o Parlamento impede que seja conhecida a verdade? Ninguém o ajuda, nas altas esferas do Estado não há vontade de provocar atritos por causa de um protestante supliciado. Paga a um advogado para solicitar a revisão do processo. Para isso, é preciso convencer o rei. O fato é que a missão parece impossível, tal a dificuldade de vencer a inércia geral e convencer o Parlamento de Toulouse a cooperar.

        “Quem encarna este combate é Voltaire e ninguém mais”, observa Badinter. Ele não está sozinho, há os banqueiros protestantes da Suissa que podem cooperar, há os príncipes e princesas alemães. E segue: “Os filósofos aprovam e admiram seu combate, mas nenhum deles associou seu nome à campanha pública. Voltaire é o catalisador de energias (...) Foi graças a seu prestígio, a sua incrível diligência, a sua obsessiva pertinácia  e a sua rede de relações, única na França e na Europa, que existiu um caso Calas.” Ele publica duas cartas comoventes e convincentes para atingir a opinião pública: uma da viúva Calas, a outra do filho Donat. Surgem então as Peças originais a respeito da morte dos senhores Calas e do julgamento ocorrido em Toulouse. Segue-se uma torrente de depoimentos e ele empreende uma vigorosa campanha de informação e relações pública. “É preciso que o clamor chegue aos ouvidos dos juízes, levante o Céu e a Terra contra essa iniquidade terrível. Só desistirei desse caso com a morte.”
        Constata Badinter: “A força moral de Voltaire opera um milagre: seus correspondentes se mobilizam, Paris começa a se interessar e o clamor que ele esperava faz-se ouvir cada vez mais. A opinião pública é favorável aos Calas. A Europa do Iluminismo quer a reabilitação.”

        Foi preciso batalhar ainda por três anos, mas Badinter pode festejar: “O verão de 1762 assinala em sua vida uma virada de profundas conseqüências para a filosofia do Iluminismo e a própria imagem do filósofo. Engajando-se com todas as forças no combate à injustiça, Voltaire adquire uma dimensão moral que não estaria ao alcance de qualquer dos seus pares. Engajando-se sem o concurso de qualquer outro filósofo, adquire uma aura que todos irão lhe invejar. A luta contra ‘o infame’ foi conduzida e vencida por ele.” Diderot, calado durante todo o evento, não esconde sua admiração: “Que bela utilização do gênio! Como esse homem é dotado de alma, de sensibilidade, como se sente revoltado pela injustiça e atraído pela virtude! Pois quem são, para ele, os Calas? Que poderia fazê-lo interessar-se por eles? Que motivos teria para suspender trabalhos que ama para cuidar de sua defesa? Se houvesse um Cristo, posso assegurar que Voltaire o teria salvado.”
        Badinter finaliza o volume com estas palavras expressivas: “O caso Calas mudou radicalmente a imagem de Voltaire junto aos pares (...) Ele se tornou um homem respeitável. É possível continuar a odiá-lo, mas já não se pode desprezá-lo. Indiretamente, essa respeitabilidade conquistada com tanta dificuldade vai-se estender a todo partido dos filósofos e beneficiá-los (...) Aos olhos do público esclarecido da época, a filosofia deixa o simples contexto da Enciclopédia. Já não se limita a uma teoria do conhecimento ou, em termos platônicos, à busca da verdade; exprime uma busca do bem e do justo acessível a um maior número.  Mobilizando-se para defender a memória de um desconhecido e exigir justiça, não só Voltaire se mostra incomparavelmente mais eficaz que todos os discursos de então sobre a virtude como confere ao personagem do filósofo uma dimensão moral sem precedentes. Com esta ação, o Patriarca de Ferney devolveu-lhe a dignidade, há vários anos conspurcada. E também demonstrou que um homem de convicção, armado de uma boa pena e de coragem, podia mudar o rumo das coisas e conquistar um prestígio sem igual. Com isto, abriu caminho para uma última paixão intelectual: a vontade de poder.”


De uma só vez, glória, dignidade e poder

        Elizabeth Badinter abre com estas palavras o terceiro e último volume do seu estudo sobre as paixões intelectuais no século 18: “Na década de 1760 o prestígio dos filósofos está no auge. A vontade de impor seus pontos de vista – libido dominandi – nunca foi tão forte. Como conseguiram marginalizar seus inimigos irredutíveis, são considerados um partido único, que dita sua lei a uma opinião pública ávida de modernidade. Graças a esse novo protagonista (a opinião pública), o estatuto dos homens de letras mudou radicalmente. Transformaram-se numa força que se deve levar em conta, ou pelo menos fingir levar em conta. O desejo de Voltaire parece em vias de se concretizar: os filósofos governarão o mundo porque governam a opinião.”

        Em todo caso, há que se levar em conta o soberano, que continua sendo o detentor do poder real – os filósofos, mesmo os mais importantes, como Voltaire e Rousseau, não têm qualquer influência sobre ele, na França, bem entendido. É preciso mobilizar ainda mais a opinião pública, pois só ela pode se impor ao soberano. Se o da França não se abala, vem do exterior a glória impossível de conquistar em casa: muitos parecem interessados em merecer o título de “rei filósofo”. Nada melhor para isso do que oferecer ao filósofo a consideração que lhe é recusada em seu país. Honrarias e dinheiro têm seu valor nessa transação, mas o que importa mesmo é o reconhecimento de sua dignidade. Ler os seus livros, conhecer e acatar suas idéias, suas propostas, convidá-lo para ser o preceptor e orientador do príncipe herdeiro do trono. Haverá melhor maneira de mostrar a adesão do soberano às idéias do filósofo?

        Frederico II, da Prússia, já praticava tudo isso. Vem agora a imperatriz da Rússia, Catarina, que subiu ao trono em circunstâncias muito suspeitas: o marido, Pedro III, morreu de uma simples cólica hemorroidal, segundo ela própria anunciou. Ela não esconde seu empenho em conquistar fama e prestígio: “Quero ser uma mulher extraordinária, e tenho o pressentimento de que a Europa um dia falará de mim por muito tempo.” Ela leu O Século de Luis XIV e entendeu o poder dos homens de letras para eternizar a história dos soberanos. Ciente de que entrou para a vida pública de forma desastrosa, empenha-se em conquistar o favor dos filósofos, os únicos capazes de influenciar a esclarecer a opinião pública. Em menos de três semanas, envia, por meio de terceiros, três cartas sedutoras a D’Alembert: convida-o a ser o preceptor de seu filho, para criá-lo de acordo com os princípios do Iluminismo, e de quebra, garante-lhe segurança para imprimir na Rússia o que ainda falta da Enciclopédia. Os missivistas, explica Badinter, “chamam sua atenção para a personalidade ímpar da soberana, seu modernismo e sobretudo a grandeza da missão oferecida: criar o príncipe herdeiro dentro dos princípios da filosofia representa uma oportunidade única de pesar no destino do maior país da Europa”.
        D’Alembert não se deixou seduzir: recusa o convite com um argumento espirituoso: “Há trinta anos venho trabalhando exclusivamente e sem descanso, se assim posso expressar-me, em minha própria educação, e longe estou de me sentir satisfeito com o trabalho.” A Voltaire, manda uma informação ainda mais engraçada: “Sabia que me foi proposta, a mim, que não tenho a honra de ser jesuíta, a educação do grão-duque da Rússia? Mas sofro excessivamente de hemorróidas, elas são por demais perigosas naquele país, e eu quero sofrer do traseiro com toda segurança.” Fica claro, assim, que o prestígio da filosofia no estrangeiro é proporcional a sua vergonhosa perseguição em Versalhes. E D’Alembert volta a escrever a Voltaire: “A filosofia já começa muito sensivelmente a conquistar os tronos (...) Seu antigo discípulo (Frederico da Prússia) deu início ao movimento, a rainha da Suécia foi adiante e Catarina imita a ambos, e talvez venha a fazer melhor ainda.”
        A rainha não se satisfez com a recusa: escreve agora pessoalmente ao filósofo, e apresenta argumentos consistentes e desafiadores: “Ter nascido ou ser chamado para contribuir para a felicidade e mesmo a instrução de um povo inteiro, e a isto renunciar, é como se recusar a fazer o bem que o senhor toma a peito. Sua filosofia baseia-se na humanidade; permita-me dizer-lhe que não se dispor a servi-la quando poderia fazê-lo é faltar a sua meta.” E como D’Alembert se declara muito afeiçoado aos amigos e não deseja abandoná-los, ela insiste de forma arrasadora: “Venha com todos os seus amigos, prometo-lhe, e também a eles, todas as comodidades e facilidades que dependam de mim, e talvez encontrem mais liberdade e tranqüilidade que em seu país”. Como o filósofo não se abalasse, ela põe no papel argumentos bem sólidos para uma última investida: cem mil libras de emolumentos, sendo os fundos, ao fim dos seis anos de duração do preceptorado, garantidos vitaliciamente em terras, casas ou outros bens a serem comprados na França por determinação do beneficiário. E para dourar ainda mais a oferta, um magnífico palacete.

        D’Alembert é um homem pobre. Humilde e, de certa forma humilhado, pois é um bastardo. Vive ainda na casa da ama que o criou, quando criança, com os parcos rendimentos das pensões de membro das Academias de Ciências e de Letras e o que sobra da venda dos volumes da Enciclopédia. Tem ainda uma pensão de 1.200 libras anuais, que o imperador da Prússia lhe concedeu. Apesar disso, não se rende, e os filósofos passam a explorar ao máximo a repercussão dessa troca de correspondência. Voltaire escreve a D’Alembert uma carta certamente destinada à publicação: “Parece-me que se certos pedantes atacaram a filosofia na França, não se saíram bem, e que ela fez uma aliança com as potências do Norte. Esta bela carta da imperatriz da Rússia bem lhe serve de vingança. Assemelha-se à carta que Felipe escreveu a Aristóteles, com a diferença de que Aristóteles teve a honra de aceitar a educação de Alexandre, e que o senhor tem a glória de recusá-la.” E lança muitos elogios a Catarina. D’Alembert responde no mesmo tom: “Começo a crer, meu caro e ilustre mestre, que o fanatismo pode ter o mesmo destino que o Império Romano, sendo destruído pelos tártaros. Os soberanos da zona glacial darão esse grande exemplo aos príncipes das zonas temperadas; e Fontenelle teria dito a Catarina que ela está destinada a ser a aurora boreal da Europa (...) No sul, a filosofia perseguida, vilipendiada no teatro; no fundo do norte, uma princesa que a protege e cultiva.”

        Nesse ambiente festivo chega ao fim a Guerra dos Sete Anos, durante a qual a Prússia de Frederico, com pequeno apoio da Inglaterra, enfrentou uma poderosa coligação de nações que incluía França, Áustria, Rússia, Saxônia, Suécia – e não se rendeu, graças ao gênio militar e à ousadia de seu imperador. D’Alembert pode, então, cumprir a promessa feita a Frederico de visitá-lo em Berlim. A primeira reação do filósofo, ao chegar, é de deslumbramento: “Enfim pude vê-lo, esse grande e digno rei, ainda mais alto que a idéia que dele façamos (...) Não posso expressar o sentimento que experimentei ao vê-lo: meus olhos se encheram de lágrimas.” E Badinter relata: “Frederico é todo encantos: cuidados, simplicidade, inteligência. D’Alembert parece surpreso e comovido por ser tratado quase como um igual pelo rei e por seus irmãos. Ignorado e mesmo desprezado pelo rei da França, maltratado pelas autoridades, percebe-se que tem dificuldade de acreditar no que está vendo: jantar durante três horas com Frederico (que geralmente permanece apenas meia hora à mesa), longas conversas particulares, nas quais se fala de tudo sem formalidades, inclusive de filosofia e política, passeios a dois... O maior guerreiro da Europa, o monarca mais brilhante da época, seduz o filósofo oferecendo prodigamente seu tempo e seu interesse. Trata-o como amigo, quase como se fosse da família, quando viajam juntos para Potsdam. Os dois hospedam-se por alguns dias na residência do duque e da duquesa de Brunswick – ela é irmã do rei – e o cumulam de todos os sinais possíveis de bondade.”

        A descrição, aqui, é do próprio D’Alembert: “Não há manifestação de boas-vindas com que não me tenham favorecido. A duquesa me instalou para jantar e cear à mesa de frente para ela e para o rei, seu irmão. Havia nesse jantar apenas a família ducal, o rei e o príncipe da Prússia com seu preceptor.” Segue a descrição de Badinter: “D’Alembert fica deslumbrado e trata de mostrar todo o brilho de que é capaz – e Deus sabe que não é pouco – para seduzir os anfitriões. Era um encantamento que quase apagava a diferença de posições. Quando vem a ser convidado a dançar pelas próprias princesas – o que ele declina --, Jean Le Rond quase chega a esquecer que é um bastardo. Com toda evidência, está vivendo momentos inesquecíveis. Inimagináveis na França.”

        Mas afinal, por que tanta gentileza? Simples: há mais de dez anos Frederico sonha com D’Alembert na presidência da sua Academia de Berlim. Mesmo durante a guerra, não desistira desse sonho, que agora tentava concretizar: D’Alembert personifica ao mesmo tempo o cientista e o filósofo, o progresso e a sabedoria, gênio matemático e fundador da Enciclopédia. “Tornou-se assim presa ainda mais desejável para o monarca prussiano, que sonha modernizar seu país e introduzi-lo na era do Iluminismo”, resume Badinter. A descrição das manobras dos dias seguintes, já em Berlim, do rei tentando conseguir a concordância do convidado em assumir aquele papel, e deste tentando se esquivar, sem causar descontentamento, é fascinante. Eis um pequeno exemplo: “O monarca leva a generosidade a ponto de dizer que ‘faço bem à sua alma e que sentirá muita falta quando não me tiver mais’. D’Alembert teria respondido que o destino de cada um é que os afastava: ‘O seu é ser rei e o meu é ser livre’. Enfim, toma a decisão: numa carta breve, pede dispensa ao rei para voltar a Paris, e Frederico dá sua autorização, embora com tristeza, e garante: o lugar de presidente de sua Academia continua esperando por ele.

        O fato é que mais e mais os filósofos vão se envolvendo com os monarcas, e estes com os filósofos, mas trata-se sempre de um debate de idéias, enumeração de princípios. Quando Diderot, numa longa estada na corte de Catarina, começa a dar palpites sobre ações de governo, é prontamente colocado em seu devido lugar. Eles têm a sua grande oportunidade quando o jovem duque Fernando sobe ao trono do ducado de Parma: por vontade da mãe, o infante, desde os 6 anos, foi entregue aos cuidados de um educador francês,  Kerálio, matemático e engenheiro, admirador de d’Alembert, um homem de cultura, aberto às manifestações mais ativas do Iluminismo. Um ano depois, Condilac vem juntar-se a ele na tarefa de preparar o infante para governar.  Ao chegar ao trono prematuramente, o jovem dá dois sinais alentadores: deixa-se inocular, ou seja, vacinar-se contra a varíola, uma grande demonstração de coragem física e moral, pois essa prática recomendada pelos cientistas e pelos filósofos era severamente proibida em toda parte pelos governos, na França principalmente. E pretende continuar estudando.

        Para azar dos filósofos, entretanto, as manhas da política levam o jovem príncipe a se casar com a filha da imperatriz da Áustria, Maria Amélia, cinco anos mais velha do que ele, mal-educada, caprichosa, autoritária e agressiva. Registra Badinter: “Dotada de forte sensualidade e supersticiosa, ela logo ganha ascendência sobre o marido, fraco e pueril, dividido entre suas (dela) pulsões sexuais e sua carolice. Expulso de Parma, Keralio chega a Paris e relata para os amigos: ‘Eu esperava um pouco do infante, duque de Parma, considerando-se a boa educação que teve; mas onde não há alma, a educação nada pode fazer. Sou informado de que esse príncipe passa o dia encontrando-se com monges, e que sua mulher austríaca e supersticiosa seria quem manda. Oh pobre filosofia! Que será de ti?” Informa Badinter: “Dissimulado, preguiçoso, curtido numa devoção pueril, o duque acreditava na ação milagrosa das relíquias e transformara seu gabinete particular numa espécie de oratório recoberto de imagens de santos e mártires!” Alguns anos depois foi publicado o Curso de estudos de Condilac para o príncipe de Parma e Diderot fez um comentário cruel: “Esta excelente obra de um excelente professor (...) fez apenas, no entanto, um aluno néscio”.

        Uma última boa notícia parece vir, quem diria, da França. A morte de Luís XV leva ao trono Luís XVI, de apenas 20 anos. O gabinete é formado por um político veterano, Maurepas, 73 anos, “que sabe ser necessário proceder a uma espetacular ruptura com o governo anterior”. Para os filósofos, auspiciosa será a nomeação de Turgot para o Ministério da Marinha. Isso provoca um rebuliço entre filósofos e economistas: pela primeira vez uma dos seus chega ao coração do poder. Logo depois, vai também para o Ministério, Malesherbes, aquele mesmo que no passado, como censor, havia escondido na própria casa os originais da Enciclopédia que estava encarregado de apreender e destruir. Os inimigos não se deixam enganar. A senhora du Deffand assim descreve o Ministério: “De nossos três ministros o que se diz é: Turgot não duvida de nada, Malesherbes duvida de tudo e Maurepas zomba de tudo”. O novo governo adota medidas pouca coisa mais liberais, mas o suficiente para provocar reações e distúrbios. Dentro do governo há sérias divergências políticas. Abre-se uma guerra entre o governo e o Parlamento. As reformas são aprovadas, mas com elas o governo não tem futuro;  ameaçam, de uma só vez, os privilégios do clero, dos grandes proprietários, das corporações. Turgot fica sozinho para enfrentar a batalha, mas não chega a completar dois anos no poder.

        A queda de Turgot acontece no mesmo momento em que chega ao fim a experiência de Diderot na Rússia. Os monarcas deixam claro que não precisam dos filósofos para tomar suas decisões. Assiste-se a uma espécie de recuo de um mundo intelectual que envelhece e já perdeu boa parte de sua força criadora. Fecham-se os salões onde se conheceu a glória da Enciclopédia. “Só a Academia de Ciências”, registra Badinter, “passa por uma autêntica renovação, com os trabalhos de Lavoisier, Laplace e Monge. Mas já não estamos na época feliz da década de 1740, quando as matemáticas e a física estavam na moda. As ciências tornaram-se coisa de especialistas. Fogem à competência do público cultivado.”

        Na rodinha dos filósofos já ninguém reconhecia mais Frederico como um dos seus, nem Diderot mantinha sua adoração a Catarina. Explica Badinter: “Dividido entre o dever de gratidão pessoal em relação à benfeitora e a exigência de verdade do filósofo para consigo mesmo, Diderot tratou de se safar como possível. Na impossibilidade de acusar Catarina, investiu contra o despotismo esclarecido em geral e contra Frederico em particular. Devemos agradecer-lhe por ter oferecido a seus leitores a crítica mais ácida de um tipo de poder que a maioria dos representantes do Iluminismo aplaudia vinte anos antes. Sem querer, ele ia ao encontro de seu velho amigo-inimigo Rousseau, autor do Contrato Social, o peregrino solitário que sempre evitara a companhia dos grandes e poderosos para nunca ter de dever-lhes nada.”
        Os soberanos também se desiludiam. “Pouco inclinados a ceder a menor parcela que fosse de seu poder, não podiam aderir às análises cada vez mais radicais (...) Seduzindo os homens de letras, eles se apropriaram sem grande esforço do título de monarca filósofo ou homem do Iluminismo. Durante algum tempo festejou-se o déspota esclarecido, tomando-se o cuidado de distingui-lo do tirano, o que ainda convinha perfeitamente aos reis e príncipes. Quando, entretanto, se passou a preconizar a igualdade entre os homens e a soberania do povo, filósofos e monarcas começaram a se olhar de outra maneira.”

Vale a pena reproduzir integralmente as três últimas páginas com que Badinter encerra a sua extraodinária trilogia:

O retorno de Voltaire a Paris, a 10 de fevereiro de 1778, depois de 28 anos de exílio, assinala ao mesmo tempo o apogeu e o declínio do reinado do filósofo. Chegando inesperadamente à capital, sem autorização do rei, ele demonstra que a opinião pública que contribuiu para formar e na qual sempre se apoiou é uma força que já agora terá de ser levada em conta. Sua enorme popularidade o protege do mau humor de Versalhes. Em casa, na rua, na Academia ou na Comédie-Française, ele é alvo de um entusiasmo assombroso e sem precedentes na história dos homens de letras. É o que noticia a Correspondência Literária: “Não, o surgimento de uma alma penada, de um profeta, de um apóstolo não teria provocado mais surpresa e admiração do que a chegada do Sr. De Voltaire. Esse novo prodígio suspendeu por alguns momentos qualquer outro interesse; descartou os ruídos de guerra, as intrigas da toga, as dissensões da corte e até mesmo a grande querela entre gluckistas e piccinistas. O orgulho enciclopédico pareceu reduzido à metade, a Sorbonne estremeceu, o Parlamento guardou silêncio, toda a literatura ficou abalada, toda a Paris tratou de acorrer aos pés do ídolo.
“Esquecidas as ciumeiras, as disputas e as rivalidades, todo mundo que tem alguma importância na capital disputa a oportunidade de prestar-lhe homenagem. Por gratidão pela ‘infinidade de obras sublimes em todos os gêneros da literatura’, mas também por ter assumido ‘corajosamente a defesa da inocência oprimida”.

Para se ter uma idéia da glória de Voltaire, será necessário ler o relato do dia 30 de março no mesmo jornal:


‘Esse ilustre velho apresentou-se hoje pela primeira vez na Academia e no espetáculo (...)  Sua carruagem foi seguida nos pátios do Louvre por uma multidão ansiosa por vê-lo. Ele encontrou todas as portas,  todas as avenidas da Academia assediadas por uma multidão que só lentamente se abria a sua passagem, imediatamente se precipitando sobre seus passos com aplausos e aclamações as mais variadas. A Academia veio ao seu encontro até na primeira sala, honra que jamais prestou a qualquer de seus membros, nem mesmo aos príncipes estrangeiros que se dignaram assistir a suas assembléias (...) As homenagens que o senhor de Voltaire recebeu na Academia foram apenas o prelúdio das que o esperavam no teatro da nação. Sua caminhada desde o velho Louvre até as Tulherias foi uma espécie de triunfo público. Todo o pátio dos príncipes, que é imenso, até a entrada do Carroussel, estava cheio de gente; não havia muito menos no grande terraço do jardim, e essa multidão era formada por todos os sexos, todas as idades e todas as condições. Do ponto mais distante de onde se podia distinguir a viatura, elevava-se um grito de alegria universal; as aclamações, os aplausos, os entusiasmos redobravam à medida que se aproximava; e quando se pôde vê-lo, esse velho respeitável acumulando tantos anos e tanta glória, quando foi possível vê-lo descer, apoiado em dois braços, o enternecimento e a admiração chegaram ao cúmulo. A multidão tentava aproximar-se dele; e tratava também de defendê-lo dela mesmo. Todas as balizas, todas as barreiras, todas as sacadas estavam cheias de espectadores, e, detida a carruagem, já se subia na imperial e mesmo nas rodas para contemplar a divindade mais de perto.
‘Na mesma sala, o entusiasmo do público, que não se julgava possível ser capaz de ir ainda mais longe, pareceu redobrar quando (...) o senhor Brizard trouxe uma coroa de louros que a senhora de Villette depositou na cabeça do grande homem, mas que ele logo retirou, embora o público o instasse a mantê-la, com aplausos e gritos que repercutiam em todos os recantos da sala com extraordinário estrépito. Todas as mulheres estavam de pé. Havia ainda mais gente nos corredores que nos camarotes (...)  Esse entusiasmo, essa espécie de delírio universal durou mais de vinte minutos, e não foi sem alguma dificuldade que os comediantes finalmente conseguiram dar início à peça. Era Irène que se representava pela sexta vez. Nunca essa tragédia foi tão bem interpretada, nunca foi mais atentamente ouvida, nunca terá sido tão aplaudida. Caindo a cortina, os gritos e aplausos recomeçaram com mais vivacidade que nunca. O ilustre velho levantou-se para agradecer ao público, e no momento seguinte se pôde ver num pedestal, no meio do teatro, o busto desse grande homem, e todos os atores e atrizes dispostos em meia-lua, junto ao busto (...) de tal maneira que o teatro, nesse momento, representava perfeitamente uma praça pública onde se fosse erguer um monumento à glória do gênio (...) O nome de Voltaire ecoava de todas as partes com aclamações, sobressaltos, gritos de alegria, de gratidão e de admiração. A inveja e o ódio, o fanatismo e a intolerância só ousaram rugir em segredo; e pela primeira vez, talvez, se pôde ver a opinião pública na França desfrutar espetacularmente todo o seu império.’

E Diderot conclui: “Toda uma nação prestou-te homenagens que raramente seus soberanos obtiveram dela. Recebeste as honras do triunfo em tua pátria, a capital mais esclarecida do universo; quem, dentre nós, não daria a vida por um dia como o teu?”

Dois meses depois, Voltaire morre, recusando todas as retratações que os padres queriam arrancar-lhe. Firme em suas convicções, partiu como teísta, e não como cristão.
Semanas depois, chega a vez de seu velho amigo-inimigo Rousseau entregar a alma em Ermenonville. Logo seriam seguidos por D’Alembert e Diderot. As luzes do século vão-se apagando uma após outra, deixando para trás os fundamentos da modernidade e, particularmente, as paixões intelectuais.
A morte de Voltaire encerra a história do surgimento dessas grandes paixões. Não que elas tivessem sido totalmente ignoradas antes do século 18. Mas o desejo de glória, a exigência de dignidade e a vontade de poder são estreitamente dependentes do nascimento de uma opinião pública. Quanto mais esta ganhou força, mais se pôde assistir à exacerbação da primeira e da terceira paixões. O desejo de glória e a vontade de poder parecem ter-se desenvolvido em detrimento da exigência de dignidade. No século 18, esta dizia respeito à independência do filósofo em relação aos grandes. Em outras palavras, à recusa da cortesania. Hoje, a maior força é a opinião pública. É ela, e somente ela, que outorga glória e poder, por obra e graça dos meios de comunicação. Os intelectuais mudaram de senhor, mas não de escravidão. Serão capazes, para se libertar, de abrir mão de tão doces paixões?


Surpreendentemente, Elizabeth Badinter encerra aí seu trabalho, num esforço para resistir, quem sabe, à oportunidade de saudar mais adiante a coroação daquela nova época que surgia com o nascimento da opinião pública. Apenas 11 anos depois da entrada triunfal de Voltaire em Paris, o povo da cidade tomou de assalto a Fortaleza da Bastilha, símbolo do poder discricionário do soberano, e deu início a uma das duas revoluções que mudariam drasticamente a história da humanidade. À sua frente não estavam os Voltaire, Diderot, D’Alembert, Rousseau, mas os Danton,  Robespierre, Marat, Mirabeau. Intelectuais, todos eles, não filósofos, mas políticos, que não pretendiam influenciar o poder dos soberanos, mas tomar posse dele e controlá-lo com as próprias mãos.
Desde então, todas as constituições que passaram a reger a vida das nações democráticas, em todo o mundo, começam com esta frase significativa: “Todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Sem dúvida a coroação de quanto os filósofos  pensaram  e elaboraram, ao longo daquele fantástico Século das Luzes. De uma só vez, eles tomaram posse definitiva da glória, da dignidade e do poder.