sábado, 5 de setembro de 2009

Realidades inconciliáveis

Contos fantásticos do século XIX
O fantástico visionário e o fantástico cotidiano

Organização de Italo Calvino
Cia. Das Letras, 2004

Feliz decisão da editora em nos apresentar essa obra, calorosamente recebida pela crítica. Italo Calvino fez uma divisão em que seus escolhidos apontam para o futuro, no caso do fantástico visionário, ou para o presente, os do cotidiano. Todos eles com a mesma característica – a capacidade de agarrar o leitor na primeira linha, e não deixá-lo em paz até o ponto final. Explica o organizador: “”Seu tema (do conto fantástico) é a relação entre a realidade do mundo que habitamos e conhecemos, por meio da percepção da realidade, do mundo do pensamento que mora em nós e nos comanda. O problema da realidade daquilo que se vê – coisas extraordinárias que talvez sejam alucinações projetadas por nossas mentes; coisas habituais que talvez ocultem sob a aparência mais banal, uma segunda natureza inquietante, misteriosa, aterradora – é a essência da literatura fantástica, cujos melhores efeitos se encontram na oscilação de níveis de realidades inconciliáveis.”
A seleção é abrangente e variada. Estão presentes escritores muito importantes como Honoré de Balzac, Nikolai Gogol, Prosper Merimée, Edgar Allan Poe, Hans Christian Andersen, Charles Dickens, Ivan Turguêniev, Auguste Villiers de l’Isle-Adam, Guy de Maupassant, Robert Louis Stevenson, Henry James,para só citar uma parte dos contemplados. Cada um com um único conto.

Publicado originalmente em D.O. Leitura, maio/junho de 2004

A riqueza do Brasil

Patrimônio ambiental brasileiro
Coleção Uspiana Brasil 500 anos

Organizador: Wagner Costa Ribeiro
Imprensa Oficial/Edusp, 2003

Patrimônio ambiental – este é um campo em que o Brasil pode ser proclamado efetivamente rico. Estima-se que entre 10% e 20% das espécies animais e vegetais, e quantidade equivalente da água doce disponível no mundo, estejam por aqui. É disso que trata este livro, da forma mais ampla e abrangente: especialistas da Universidade de São Paulo das áreas de Humanidades e Ciências da Terra e da Vida foram chamados a colaborar na sua elaboração. Trata-se, assim, de uma reflexão plural que ataca o objeto de estudo, simultaneamente, pelo lado dos problemas, do passado, do presente, das perspectivas para o futuro.
Pode-se dizer com segurança que a devastação ambiental, no Brasil, começou logo a seguir ao descobrimento, tanto que o pau-brasil, nosso primeiro sucesso de exportação, logo caiu em ameaça de extinção. As novas terras foram ocupadas de forma predatória, como, aliás, se fazia em toda parte naquela época: tratava-se de recolher as riquezas possíveis, de forma rápida. Depois vieram a ocupação, o desenvolvimento dos ciclos agrícolas – com a cana de açúcar e o café, por exemplo, perdeu-se quase toda a Mata Atlântica do litoral. A industrialização dilapidou depósitos de minerais, como a bauxita, o manganês, o ferro, na maior parte usados para exportação. A modernidade, finalmente, trouxe novas e mais eficientes formas de exploração agrícola intensiva dos solos, que sofreram erosão, perderam nutrientes, exigiram adubos e defensivos para se tornarem outra vez produtivos, o que levou à poluição das águas subterrâneas.
Leis e regulamentos produzidos pelos governantes na colônia, no império e no começo da República tentaram inutilmente coibir algumas dessas práticas predatórias. O assunto só entrou, significativamente, nas preocupações das pessoas no final do século 20. O mundo chega ao século 21 empenhado em salvar o que ainda resta, e o Brasil, apesar desse passado doidivanas, é um dos raros milionários com riquezas para exibir e desfrutar.
Diz o texto de apresentação: “O descompasso entre países detentores de tecnologia e países com estoque de informação genética foi uma das razões para a articulação da ordem ambiental internacional, um conjunto de convenções que procura regular a ação humana em escala mundial para mitigar problemas ambientais (...) Com este livro, pretende-se avaliar os impactos ambientais associados à desigualdade social brasileira ao longo da história do país e apontar diretrizes para o futuro. Um futuro que já exige ações dos dirigentes do país e que alcança repercussão nacional e internacional, como nas conferências promovidas pela Organização das Nações Unidas.”
Publicado originalmente em D.O. Leitura, maio/junho de 2004.

Próximos de nós

Um rio chamado Atlântico
Alberto da Costa e Silva
Nova Fronteira/Editora da UFRJ, 2003

Aqui estão reunidos artigos que o autor publicou em diferentes locais, a partir de 1961, todos sobre a África, a outra margem do rio chamado Atlântico. Costa e Silva dispensa especiais amor e interesse por esse continente, onde passou boa parte de sua vida profissional, como diplomata. Isso lhe permitiu recolher abundante material arqueológico, antropológico e histórico, com os quais já nos presenteou com três livros luminosos – “As relações entre Brasil e a África negra, de 1822 à I Guerra Mundial”, “A enxada e a lança: a África antes dos portugueses”, e “A manilha e o libambo: a África e a escravidão de 1500 a 1700”.
Sobre essa coletânea de ensaios ele observa: “Preocupados com nós próprios, com o que fomos e somos, deixamos de confrontar o que temos por herança da África com a África que ficou do outro lado do Atlântico”. E avança na advertência: “Se, após 1500, não se pode estudar a evolução do Brasil sem considerar as mudanças na política portuguesa e o que se passava num império de que fazíamos parte e que se alongava de Macau a Lisboa, os três séculos de comércio de escravos ligam indissoluvelmente os acontecimentos africanos, sobretudo os da África Atlântica, à vida brasileira”.
E conclui: “A história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a explicar-nos.”

Publicado originalmente em D.O. Leitura, abril de 2004.

Federico Garcia Lorca

Obra poética completa (edição bilíngüe)
Tradução: William Agel de Melo
São Paulo, Editora da UnB/Imprensa Oficial do Estado

Concorda-se, em geral, com a observação de que a poesia de Garcia Lorca é puramente espanhola. Também é certo que ele nunca esteve preso a correntes, movimentos ou escolas. Como observa Ático Vilas-Boas da Mota, apresentador desta edição das obras completas, ele “sabia aproveitar praticamente as lições de quase todas as tendências e escolas literárias para desembocar no artesanato da palavra, seu ofício maior”. Não falta, ainda, quem atribua muito de sua repercussão, também fora do país, ao destino trágico do escritor, que sem ser propriamente um engajado político, embora tivesse manifestado apoio ao campo republicano, foi morto pelas forças reacionárias que tomaram a Espanha de assalto, na mesma época em que o nazismo alemão e o fascismo italiano deslumbravam partes da Europa.
Foi um poeta moderno, que cultivou amizades no campo do surrealismo, como o pintor Salvador Dali e o cineasta Luís Buñuel, mas não se deixou influenciar, embora muitos vejam alguma coisa de surrealista, sobretudo em seu teatro, onde despontam obras consagradas como Yerma, Bodas de sangre, La casa de Bernarda Alba. Como quase todas as edições da obra completa de Garcia Lorca, esta também traz a série de desenhos com que ele a ilustrou, ao longo da curta vida de 38 anos.
Publicado originalmente em D.O. Leitura, 2005

Oportuna reedição

Dicionário de política
Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino
Tradução de Carmem C. Varriale, Gaetano Lo Monaco, João Ferreira, Luís Guerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini
São Paulo, Imprensa Oficial/Editora da UnB, 2004

As edições deste livro portentoso, quase duas mil páginas, em dois volumes, sucedem-se com regularidade, prova de que se mantém atual e consegue angariar sempre novos leitores. Os doutos autores que nele trabalharam – 122 mestres consagrados em diferentes matérias distribuídos por universidades espalhadas pelo mundo, sob o comando do notável pensador italiano Norberto Bobbio, auxiliado pelos colegas Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquini – dedicam-no a um leitor “não especialista, ao homem culto e aos estudantes de segundo grau e nível superior, e a todos os que lêem revistas e jornais políticos, aos que ouvem conferências e discursos, aos que participam de comícios ou que assistem a debates na televisão, dirigidos por especialistas ou políticos profissionais”.
Não sem razão, pois “a linguagem política é notoriamente ambígua” e “a maior parte dos termos usados no discurso político tem significados diversos”. Tal variedade depende “tanto do fato de muitos termos terem passado por longa série de mutações históricas – alguns termos fundamentais, tais como democracia, aristocracia, déspota e política foram-nos legados por escritores gregos –, como da circunstância de não existir até hoje uma ciência política tão rigorosa que tenha conseguido determinar e impor, de modo unívoco e universalmente aceito, o significado dos termos habitualmente mais utilizados”,
Trata-se de obra “exaustiva”, dizem ainda os autores, e isso torna mais notável a popularidade de que desfruta. A reedição, portanto, justifica-se, e parece bem oportuna, dadas as singularidades da vida política brasileira neste momento, quando um partido oposicionista tenta consolidar-se no poder, recorrendo a variados métodos para conquistar apoios e consolidar alianças, entre alguns dos seus adversários do passado, o que leva os meios de comunicação, em geral, a dedicarem a essas questões tempo e espaço acima do que seria considerável aceitável em tempos menos agitados. Por isso mesmo, essa sensação de oportunidade se estende ao campo internacional, onde conflitos e guerras se sucedem, e agora desponta a incomum necessidade de substituição de um chefe de Estado de envergadura descomunal, como o Papa.
Sobre o coordenador do trabalho escreve apropriadamente o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, num curto prefácio a esta quinta edição: “Se a condição de intelectual com vida ativa já o recomendava, até para a identificação dos temas de real relevância, esforços enciclopédicos como a feitura do Dicionário somente puderam prosperar pela vocação multidisciplinar de Norberto Bobbio.” Um militante das soluções pacíficas, “que se opunha com contundência à lógica da dissuação nuclear, ao equilíbrio do terror”, que considerava inconsistente com todas as tentativas feitas até então para se dar um sentido à humanidade. “A Guerra Fria terminou”, lembra Fernando Henrique, “dando lugar a um conflito de fundamentalismos, que parece reclamar, para a sua superação, a mesma terapia: coordenação multilateral e uma nova ética, inspirada nos valores da paz e da democracia.”

Publicado originalmente em D.O. Leitura, 2005

Incertezas e angústias

QUESTÃO DE ÊNFASE
Susan Sontag
Tradução de Rubens Figueiredo.
São Paulo, Companhia das Letras, 2005

São 41 textos, publicados num período de vinte anos, divididos em três partes: “Ler”, dedicada a livros e escritores; “Ver”, que trata das artes visuais e dos espetáculos; na terceira, “Lá e aqui”, exibe-se a extraordinária versatilidade dessa intelectual americana que nunca aceitou separar “a vida contemplativa” da “vida ativa”: uma mistura de lembranças de viagens, dos momentos de isolamento criativo, um relato da loucura que foi dirigir a peça Esperando Godot, de Samuel Becket, na Sarajevo sitiada durante a guerra da Bósnia. Feito a que ela apresentou uma justificativa: “Cultura, cultura séria, é uma expressão da dignidade humana”.
Na primeira parte, é impossível para nós, brasileiros, ignorar o ensaio de 14 páginas dedicado ao livro Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis. Além de reservar-lhe tão grande espaço, a escritora brinda-o com elogios consagradores: “È, pelo visto, um desses livros arrebatadoramente originais, radicalmente céticos, que sempre impressionarão os leitores com a força de uma descoberta particular. É pouco provável que soe como um grande elogio dizer que esse romance, escrito mais de um século atrás, parece bem... moderno.” Sontag espanta-se de que tal escritor seja tão pouco conhecido no mundo, e sobretudo que seja tão pouco lido nos países sul-americanos, “como se ainda fosse difícil digerir o fato de que o maior romancista produzido pela América Latina tenha escrito em português e não em espanhol”.
Em carta póstuma, dirigida ao argentino Jorge Luís Borges, por um triz não caiu em contradição, ao lembrar o que dissera em entrevista concedida antes da morte do escritor: “Não existe hoje um escritor vivo mais importante para os outros escritores do que Borges. Muitos diriam que ele é o maior escritor vivo hoje (...) Muito poucos escritores de hoje não aprenderam algo com ele ou não o imitaram.”
O fato é que ela percorre com desenvoltura e graça grande variedade de territórios. O cinema, depois de quase cem anos acumulando glórias, parece-lhe afundar-se “num declínio irreversível e degradante”. Sobre os dançarinos observou, argutamente: “Toda vez que parabenizei um amigo ou conhecido que é dançarino por sua excelente apresentação – e incluo Baryshnikov –, ouvi antes de tudo uma desolada ladainha de erros cometidos: perde-se uma batida, um pé não ficou apontado na posição correta, houve um ligeiro escorregão numa complicada manobra com o par (...) Em nenhuma outra arte se pode encontrar um abismo comparável entre aquilo que o mundo pensa de um astro e aquilo que o astro pensa a respeito de si”. Sobre a ópera de Wagner, escreveu: “Observou-se desde o início que ouvir Wagner produzia um efeito semelhante a consumir psicotrópicos: ópio, disse Baudelaire, álcool, disse Nietzsche”. E concluiu, arrasadora: “Os altos valores redentores e aliciantes que Wagner acreditava expressar em suas obras foram desacreditados de vez (devemos isso à ligação histórica entre a ideologia wagneriana e o nazismo). Poucos cogitam ainda, como fizeram gerações de admiradores e de tementes de Wagner, acerca do que suas óperas dizem. Agora Wagner é apenas desfrutado ... como uma droga.”
Sobre a ópera em geral, observou: “Todas as artes feitas com música – porém, mais do que qualquer outra, a ópera – aspiram à experiência do êxtase”. O mundo da fotografia oferece-lhe a oportunidade para discorrer sobre o eterno conflito homem x mulher: “Queira ou não, um livro de fotos de mulheres terá de levantar a questão das mulheres – não existe nenhuma equivalente ‘questão dos homens’. À diferença das mulheres, os homens não são uma obra em andamento”.
E finalmente, a certeza que extraiu do exercício de seu trabalho: “Aí está a grande diferença entre ler e escrever. Ler é uma vocação, uma habilidade na qual, mediante a prática, certamente nos tornamos mais aptos. O que acumulamos como escritores são sobretudo incertezas e angústias.”
Publicado originalmente em D.O. Leitura, março de 2005

O petróleo é do Lula

Em março de 1958 Jânio Quadros governava São Paulo e começava a campanha para a escolha de seu sucessor. Sem estar ligado a nenhum partido, formalmente ou espiritualmente, Jânio era apoiado por uma base aliada surrealista – a democracia cristã de Franco Montoro, o socialismo de Wilson Rahal e Cid Franco, dois partidos trabalhistas, o Nacional de Emílio Carlos e o Social de um líder tão insignificante que nem lembro seu nome, E a UDN, claro, de Abreu Sodré e Herbert Levy, mais encorpada. A base aliada havia imposto a candidatura do secretário da Fazenda, Carvalho Pinto, que havia feito um notável trabalho de arrumação das finanças do Estado, mas como candidato, valha-me deus... Perto dele, Dilma Roussef pode ser considerada uma demagoga das boas.

A campanha não deslanchava e convocou-se uma reunião de emergência para a casa de Emílio Carlos – a base pretendia dar um aperto em Jânio, para que começasse a se empenhar pessoalmente pela vitória. Emílio Carlos morava num casarão nos Jardins, com uma enorme porta de vidro fosco dando para a rua, da qual estava afastada uns 50 metros. Repórter novato de política, eu estava ali de plantão, esperando o fim do encontro para apurar as novidades. Não havia luz no alpendre, de modo que dava para enxergar os vultos das pessoas lá dentro, pelo vidro fosco, a gesticulação agitada, até identificar alguns deles, mas não dava para ouvir. Com a cumplicidade do motorista do carro oficial de Jânio, pulei o portão e fiquei encostado na porta, e ali sim, dava para ouvir tudo claramente, até porque eles discutiam em voz alta.

Queriam que Jânio comparecesse aos comícios que estavam sendo realizados com audiências ridículas. O governador foi peremptório: “A comícios de quinhentas pessoas não vou. Quinhentas pessoas eu reúno agora, batendo numa lata na Praça da Sé”. Era mais de meia-noite. Seguiu-se a discussão, entrou-se na estratégia da campanha – e a base achava indispensável botar uma pitada de nacionalismo na pregação. Afinal, a campanha do petróleo é nosso ainda ressoavam pelos ares, a Petrobrás já era uma realidade legal, embora claudicante como empresa, e o petróleo era nosso, graças ao monopólio que a oposição enxertara no projeto original de Getúlio Vargas, só para atrapalhar, pensavam eles. Jânio resistiu, achava que essa questão da exploração do petróleo pelo Estado estava fora de moda. Um dos representantes socialistas ousou contestá-lo, citando o exemplo do Iraque, que estava se tornando uma potência milionária. Jânio cortou-lhe a palavra rispidamente: “O Iraque, rapazinho, é outro problema. O Iraque tem petróleo e este país não tem.”

Meu coração gelou. O foca condenado ao plantão nas reuniões da madrugada estava consagrado. Nenhum político daquela época, nem mesmo Carlos Lacerda, teria coragem de declarar que o Brasil não tinha petróleo. Jânio, é claro, acreditava estar falando numa reunião fechada, sem a imprensa por perto (será que acreditava mesmo? Até hoje carrego essa dúvida atroz. Aquela ajuda que o motorista me deu para pular o portão e chegar ao alpendre não teria sido previamente combinada com o patrão?) Terminada a reunião, reuni as declarações rotineiras dos participantes, todos me garantiam que agora a campanha ia engrenar, e fui para a redação escrever a minha manchete sensacional. Naquele tempo a Folha era As Folhas: o matutino Folha da Manhã, o primeiro vespertino Folha da Tarde, e o segundo vespertino cheio de amenidades Folha da Noite.

A Folha da Manhã já estava sendo impressa. Os editores da Folha da Tarde não deram a menor bola para a minha matéria, o tchan deles era o noticiário de polícia. A Folha da Noite, que fechava ao meio-dia do dia seguinte, deu-lhe uma chamadinha na primeira página, mas isso não significava nada, pois era o nosso jornal clandestino, ninguém lia. A Folha da Manhã, o matutino quente mesmo, publicou-a num canto qualquer – afinal, era notícia velha, de dois dias atrás. E assim caminhou a campanha, com todo mundo certo de que seria uma barbada para Adhemar de Barros, o ex-governador e ex-interventor, simpático e sorridente, hábil nos palanques e no trato direto com os eleitores, que já governara o Estado duas vezes, e exibia três bandeiras espetaculares de suas passadas administrações: a construção do Hospital das Clínicas, o asfaltamento da rodovia Anhanguera, entre São Paulo e Campinas, e o asfaltamento da rodovia Anchieta, que liga São Paulo ao porto de Santos. Não chegava a 200 quilômetros de asfalto, mas era um portento.

Rolou a campanha, Jânio começou a participar dos comícios, a televisão era uma coisa muito secundária, e Carvalho Pinto começou a encorpar, apesar da escassa vocação para o trabalho de candidato. Graças à sua arrumação das finanças, Jânio tinha dinheiro para implementar o seu PAC, um formidável plano de asfaltamento de estradas, que transformou todo o Estado em um gigantesco canteiro de obras – o asfalto chegava a todos os cantos, ao mesmo tempo. Foi uma manobra de extrema argúcia estratégica – a nascente indústria automobilística começava a despejar fuscas, kombis, gordinis e aero-willys na praça, e os brasileiros começavam a comprá-los vorazmente.
Nossa equipe da reportagem política, eu, Cláudio Coletti, Enio Pesce e Roland Marinho Sierra viajávamos todos os fins de semana para o interior, acompanhando os três candidatos – Adhemar, Carvalho Pinto e Auro Moura Andrade, que concorria pelo poderoso PSD do presidente Juscelino Kubitschek, mas era um zero à esquerda em São Paulo. E começamos a descobrir que fora da capital, havia um verdadeiro deslumbramento com o programa do asfalto. O passeio de fim de semana das famílias agora proprietárias de um automóvel era reunir parentes e vizinhos e correr a estrada, em direção à capital, para ver onde o asfalto já chegara. Semana após semana, acompanhava-se o avanço das obras metro a metro. Era uma empolgação. Quando começamos a trazer essas impressões para a redação, quase apanhamos fisicamente – consideravam-nos janistas empedernidos, ou, quando a coisa engrossava mesmo, subornados pelo governo. Adhemar estava ali, com seu sorriso, a velha expressão carinhosa “meu povo”, barbadona.
Lembro que o Ênio Pesce fez um monte de apostas, nada a dinheiro, coisas do tipo raspar o bigode, carregar de cavalinho dando dez voltas na redação. Não havia pesquisas eleitorais (nem exames pré-natais, de modo que urna, barriga de mulher e cabeça de juiz eram, ainda, coisa para se conhecer só depois da apuração). Ênio ganhou todas as apostas. Carvalho Pinto deu uma lavada tão espetacular em Adhemar, que este desapareceu logo após o início da acachapante contagem dos votos, e até correu o boato de que se suicidara. Jânio, apesar da coragem de dizer que o Brasil não tinha petróleo, cresceu, chegou a presidente da República apesar de ser um entreguista notório. O petróleo, este sim, continuava nosso, e a Petrobrás até contratara um especialista americano para orientar as pesquisas. Logo, porém, descobriu-se que, na verdade, ele era um façanhudo espião da CIA, que aqui estava apenas para sabotar nossa política petrolífera – não era a toa que seu relatório final confirmava o palpite do Jânio, o Brasil não tinha petróleo.
O tempo correu, Jânio se elegeu e renunciou, passou o fugaz governo João Goulart, veio a ditadura – e finalmente alguém teve a coragem de reconhecer que o odiado Mister Link era apenas um honrado, discreto e competente geólogo que acertara na mosca – o Brasil realmente não tem petróleo – em terra. Coube ao presidente Ernesto Geisel, que não precisava de votos nem do apoio dos eleitores, a glória de descobri-lo abundante no fundo do mar, e a Petrobrás, de que ele fora presidente, tornou-se uma grande e respeitada empresa do ramo. Geisel, dizia-se, acertara os 13 pontos na loteria esportiva – a única de que dispúnhamos, na época, anos 1970. Lula, agora, com o pré-sal, acertou na mega-sena, muito mais endinheirada e encorpada.
Lembro tudo isso para constatar que o petróleo, finalmente, entra para valer na campanha eleitoral, provavelmente com o mesmo peso que teve o asfalto na paulista de 1958. E a oposição, que já se lambusara toda na condução do combate às malfeitorias cometidas no Senado, bisonhamente oferece a Lula a oportunidade de consagrar-se como o herói do nosso petróleo, assumindo ela própria a feição do malfeitor da CIA que, acreditou-se no passado, era o pacato Mister Link. Lula até vacilou, e admitiu, por um momento, suspender o regime de urgência para a tramitação dos projetos no Congresso. Mas caiu em si (ou alguém o induziu a isso, não importa) e voltou a insistir na urgência. A oposição, com certeza, vai insistir na cobrança de mais tempo, no desespero vai dificultar e atrasar as votações, e vai dar o mote mortal para a campanha do próximo ano. Não podemos esquecer que no segundo turno da eleição passada, Alckmin teve a maior dificuldade para lidar com as citações das passadas privatizações.
Em 1958, Jânio acertou ao falar mal do petróleo, pois tinha o asfalto escondido na algibeira. A oposição tem os telefones abundantes – mas isso ela já admitiu, em praça pública, foi um pecado, não uma glória.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Paulistas e mineiros na política

Em 25 de fevereiro de 1919 o jurista paraibano Epitácio Pessoa, chefe da delegação brasileira na Conferência de Versalhes, que decidiria as reparações a serem pagas pela Alemanha às nações que a derrotaram na primeira guerra mundial, recebeu um telefonema do ministro (embaixador) brasileiro na França: de Paris ele lhe comunicava que o Partido Republicano, tendo em vista o falecimento do presidente da República eleito, o paulista Rodrigues Alves, e o mau estado de saúde do vice Delfim Moreira, mineiro, decidira lançar sua candidatura para a eleição em que seria escolhido o novo presidente. Epitácio agradeceu, mas mandou informar que, antes de regressar ao Brasil, viajaria à Itália, Bélgica e Estados Unidos, cujos governos o haviam convidado formalmente. Enquanto o candidato viajava tranquilamente, foi realizada a eleição aqui no Brasil – ele obteve cerca de 250 mil votos, contra 120 mil do adversário Rui Barbosa.
Em junho, o já presidente ainda estava em Washington e, pelo telégrafo, articulou a escolha do presidente da Câmara dos Deputados e do líder da bancada governista – o primeiro cargo ficou com um deputado mineiro, o segundo com um paulista. No fechado sistema político da chamada República Velha, que se estendeu da proclamação da República, em 1889, à revolução de 1930, coisas grotescas como essa não chegavam a surpreender. Mas merece destaque o cuidado por ele demonstrado com a escolha do presidente da Câmara e do líder da bancada: um mineiro e um paulista. Naquela época, Minas Gerais era o Estado mais populoso, e por isso mais influente politicamente. São Paulo vinha a seguir, compensando com o poder da crescente economia cafeeira o menor eleitorado. O Rio Grande do Sul vinha em um mais distante terceiro lugar. Os demais eram figurantes.
Há uma tendência a reduzir o sistema político daquele período a um férreo acerto entre mineiros e paulistas para tomar conta do poder. Na verdade, a política da República Velha foi uma permanente negociação entre lideranças fortes em seus Estados – e paulistas e mineiros estavam juntos no topo da pirâmide. O eleitorado tinha reduzida importância, ou talvez nenhuma importância, como fica evidente no episódio da eleição bissexta de Epitácio Pessoa. Os políticos paulistas haviam se destacado no movimento pela proclamação da República – a famosa Convenção de Itu ficou sendo o marco mais brilhante daquela pregação. Por isso, depois que o imperador Pedro II foi despachado para o exílio e cumpriu-se o desastrado período em que a Presidência da República foi exercida por dois militares, o poder voltou naturalmente para os civis.
E São Paulo emplacou três presidentes sucessivos: Prudente de Morais, Campos Salles e Rodrigues Alves. Foi Campos Salles, pelas mãos do governador (então chamado presidente) de São Paulo, Rodrigues Alves, quem estruturou o arcabouço do que viria a ser a Política dos Governadores: os resultados das eleições populares passaram a depender da anuência das casas legislativas, as Assembléias, nas eleições estaduais, e a Câmara dos Deputados, nas eleições federais. Isso levou inevitavelmente ao sistema de partido único – o poderoso Partido Republicano Federal, na verdade um amontoado de Partidos Republicanos estaduais. As divergências, quando se manifestavam, era dentro do partido oficial, e lá mesmo eram solucionadas, sempre pela negociação, pois uma eventual vitória de um dissidente jamais seria reconhecida pela Assembléia ou pela Câmara.
Rodrigues Alves encaminhou naturalmente a candidatura do mineiro Afonso Pena para a sua sucessão. Este, logo de saída, promoveu a assinatura do Convênio de Taubaté, estabelecendo a base do que seria a política econômica de seu governo, em torno do café e, aí sim, estabeleceu-se uma aliança Minas-São Paulo, formal, mas nem assim capaz de garantir aos dois Estados o controle permanente do processo político. Foi exatamente durante o governo de Afonso Pena que despontou uma poderosa liderança política, nem mineira, nem paulista, capaz de perturbar o panorama: o gaucho Pinheiro Machado. Que conseguiu as proezas de levar à presidência, primeiro o fluminense Nilo Peçanha e, depois o ministro da Guerra, marechal Hermes da Fonseca.
Mas quando Pinheiro Machado ensaiou lançar-se ele próprio candidato à sucessão do marechal, aí sim, Minas e São Paulo deram-se as mãos oficialmente, para colocar as coisas nos eixos. Foi para o governo o mineiro Wenceslau Braz, a política voltou à velha rotina e seu sucessor seria Rodrigues Alves, que morreu antes da posse e levou àquela sui generis eleição de Epitácio Pessoa. Que foi sucedido pelo mineiro Artur Bernardes, por sua vez sucedido pelo paulista Washington Luiz, que teve a infeliz idéia de tentar entregar o poder a outro paulista – Júlio Prestes. O problema não era ser outro paulista, mas ser um político ainda jovem, passando a perna na implacável raposa mineira Antônio Carlos Ribeiro de Andrada, que aguardava sua vez. Minas aliou-se ao projeto oposicionista do gaucho Getúlio Vargas e embora o governo, como sempre, vencesse a eleição, a custa de muita fraude, não ficou com o poder: foi atropelado pela Revolução de 1930, que tudo mudou.
De 1930 a 1945 o Brasil teve um só presidente: o gaucho Getúlio Vargas. Os quatro primeiros anos como presidente provisório, comandante da revolução vitoriosa; outros três como presidente eleito indiretamente pelo Congresso Nacional; os outros oito como ditador incontrastado. Paulistas e mineiros participaram de todas essas fases, como ministros e altos funcionários do governo federal, mas não havia atividade política propriamente dita a exercer. Getúlio nomeou interventores para governarem todos os Estados, e assim fez nascer uma nova geração de lideranças que trabalharam em surdina, durante a ditadura, e desabrocharam para a luz do sol, quando se restabeleceu o regime democrático, em 1945. E então aconteceu o imprevisto: Minas, que fornecera a maior parte dos políticos e intelectuais adversários da ditadura, signatários de um notável manifesto, com centenas de assinaturas, defendendo o restabelecimento da democracia, voltou à antiga posição de liderança; São Paulo, que lutara de armas na mão contra a ditadura, ficou marginalizado.
Talvez seja porque, na memória política nacional, a Revolução Constitucionalista de 1932 ficou registrada mais como um movimento separatista do que democrático. O fato é que no novo sistema político formaram-se muitos partidos, mas apenas três realmente fortes: pela ordem de grandeza, o Partido Social Democrático, que reunia lideranças estaduais, algumas originadas ainda na República Velha, aliadas de Getúlio; a União Democrática Nacional, onde estavam os adversários do ditador; e o Partido Trabalhista Brasileiro, fundado pelo próprio Getúlio, fortíssimo no Rio Grande do Sul e figurante nos outros Estados.
Durante vinte anos, PSD e UDN alternaram-se no governo de Minas Gerais, rivais inconciliáveis, mas ali o PTB sempre foi pequeno. Em São Paulo, os três sempre foram insignificantes. A política estadual, nos mesmo vinte anos, foi dominada pelo interventor nomeado por Getúlio, Adhemar de Barros, nos primeiros dez anos, e por seu inimigo Jânio Quadros, nos outros dez. Minas emplacou um presidente da República, Juscelino Kubitschek, que fez um governo notável; São Paulo emplacou Jânio Quadros, que fez um governo catastrófico, embora durasse poucos meses. E assim, como aconteceu das outras vezes em que os políticos dos dois Estados se desuniram, a política nacional destrambelhou, e vieram vinte anos de ditadura militar, em que todos os políticos ficaram longe do poder.

A volta à democracia, enfim, foi uma conquista tenazmente batalhada ao longo desses vinte anos, e consagrou uma nova aliança política Minas e São Paulo, nas figuras exemplares de Tancredo Neves e Ulysses Guimarães. A dança das cadeiras recomeçou com o mineiro Tancredo Neves, que, como Rodrigues Alves, não chegou a assumir, e deixou a presidência para seu vice, José Sarney, nordestino como Epitácio. Na primeira eleição direta do período, deu outro nordestino, Fernando Collor, que foi cassado antes de completar o mandato, abrindo vaga para seu vice, o mineiro Itamar Franco. E então São Paulo, que na luta pela redemocratização fora pioneiro na mobilização da opinião pública, voltou aos tempos gloriosos do pós proclamação da República: dois presidentes paulistas vão governar o país por longos 16 anos seguidos: Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva.
Com certeza não se trata de outro acidente do destino: foi em São Paulo que se formaram os dois grandes partidos que desde a redemocratização dominam a cena política nacional, fortes em quase todos os Estados. Ali surgiu o novo movimento sindical, livre das amarras que no tempo do getulismo o tornavam dependente do poder público. Certamente, no Brasil já não se faz política pensando apenas, ou principalmente, em acomodar lideranças poderosas – agora o que conta é a opinião pública, principalmente. Não há mais política de governadores para reconhecer ou não resultados eleitorais.
Ainda assim, o velho enigma novamente se coloca, desta vez apenas para a oposição, mas com reflexo inevitável em todo o palco, e com muita possibilidade de ser apenas uma farsa, como ensinava o velho Marx, citando Hegel: Serra ou Aécio? Ou Serra e Aécio? Será possível Serra contra Aécio?
Continuando a interrogar a esfinge: estarão paulistas e mineiros unidos? E se estiverem, desta vez será bom ou mau para o Brasil?

Quem governa para quem

Quem governa para quem

Sem argumentos para refutar a carta aberta divulgada por Fernando Henrique Cardoso, o presidente da República recorreu a um dos seus bordões favoritos: “São pessoas acostumadas a governar o Brasil para 30 milhões de pessoas, nós estamos governando para 190 milhões de pessoas”. Esclarecimento necessário: não é que faltem argumentos para refutar Fernando Henrique – eles até abundam; apenas o presidente não sabe manuseá-los. Prefere repetir seus bordões.

Poderia registrar que as mais recentes pesquisas de intenção de voto informam que aqueles 30 milhões para quem Fernando Henrique e seus antecessores governaram estão, no momento, afinados com a reeleição – sinal de que esta não lhes parece algo assustador. E levar este artigo por esse caminho. Mas prefiro tomar outro rumo. Pego dois volumes do historiador Edgard Carone – A segunda República e A terceira República – para me abastecer de dados precisos. Vamos a eles.

Getúlio Vargas parte de Porto Alegre em direção ao Rio de Janeiro no dia 3 de outubro de 1930, à frente de uma força armada. No dia 24 os chefes do Exército organizam-se em uma Junta Governativa, depõem o presidente Washington Luís e tentam negociar a sua participação no novo poder que vai se organizar. Não há negócio a fazer – Getúlio assume o governo, ainda chamado provisório, no dia 3 de novembro. Poucos dias depois, o governo se torna definitivo e aqueles chefes militares caem no esquecimento.

É fácil imaginar que o novo presidente tivesse mil coisas para pensar e cuidar nesses primeiros dias tão conturbados. Pois já no discurso de posse, ele começou a governar também para os 160 milhões de brasileiros (naquele tempo com certeza não eram tantos) de que o atual presidente se julga o primeiro e único benfeitor: prometeu criar o Ministério do Trabalho, “destinado a superintender a questão social, o amparo e a defesa do operariado urbano e rural”. A promessa foi cumprida transcorridos escassos 23 dias: o Ministério foi criado e entregue a um ativo articulador da revolução, Lindolfo Collor, avô do nosso conhecido e deposto presidente Fernando Collor.

Getúlio não era um operário nem um retirante nordestino como o atual presidente, ao contrário, era um escolado integrante da elite branca de que fala sempre o governador Cláudio Lembo – governou o Rio Grande do Sul, foi deputado federal em várias legislaturas, ministro da Fazenda. Outra vez ao contrário de Lula, chegou ao poder pela força das armas sabendo muito bem o que ia fazer. E fez logo, inclusive na área social: à criação do Ministério seguiram-se, em rápida sucessão, a Lei dos Dois Terços, vigoroso ataque ao desemprego na área industrial – ela limitou o ingresso de trabalhadores imigrantes e obrigou empresas estrangeiras aqui estabelecidas e contratarem trabalhadores brasileiros. Depois vieram a regulamentação do trabalho feminino, com uma regra básica – trabalho igual, salário igual –, do trabalho infantil, a jornada de 8 horas diárias, as férias anuais de 15 dias úteis, os institutos de assistência e previdência social, a organização dos sindicatos. Os outros 30 milhões chiaram – o sindicato patronal dos bancos, por exemplo, em correspondência dirigida ao presidente, anunciava que, diante de tais medidas, “grandes bancos nacionais resolveram suprimir imediatamente grande parte, se não a maioria de suas agências”.

Bobagem, ninguém foi à falência. Mas os patrões resistiram bravamente às novidades. Tanto que o salário mínimo precisou esperar a instituição da ditadura do Estado Novo, em 1937, para ser instituído por decreto presidencial. Com essa facilidade, várias outras providências, igualmente assustadoras para os patrões, foram adotadas: criou-se a Justiça do Trabalho, fábricas com mais de 500 operários foram obrigadas a instalar refeitórios, criou-se o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS), que ensinava os operários a comerem direito e para isso instalou restaurantes populares. Nós, pobres jornalistas que viemos para Brasília na inauguração, em 1960, acabada a festança de abril passamos a fazer nossas refeições nesses restaurantes – o do Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários do Serviço Público (IAPFESP) era o melhor de todos.

Para coroar tudo isso, veio a Consolidação das Leis do Trabalho que, entre outras coisas, garantia aos trabalhadores estabilidade no emprego depois de dez anos trabalhando na mesma empresa. São, com certeza, medidas muito mais consistentes de amparo aos trabalhadores pobres do que o Fome Zero, que o atual presidente também anunciou no dia da posse, e seu substituto Bolsa Família. Aliás, nesse capítulo da consistência, o governo petista perde até para a ditadura militar – a criação do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) no governo Castello Branco e a extensão da aposentadoria por idade aos trabalhadores rurais, no governo Emílio Médici, são dois exemplos.

Pelo menos em um campo, em todo caso, o atual governo trata melhor os trabalhadores do que esses dois antecessores: o da liberdade. Nos dois períodos citados a atividade política da categoria foi severamente reprimida, o Partido Comunista, que pretendia ser o PT da época foi posto na ilegalidade, houve prisões, tortura, mortes. Mas liberdade houve, plena e segura, nos governos de JK, Jango, Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique. Como se vê, nosso presidente, que pretende ser o único a governar para 190 milhões de brasileiros, não começou nada, nem foi mais longe do que ninguém – e pelo menos quanto ao primeiro caso, vai ficando numa distante rabeira.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Uma brasileira contra o nazismo

Aracy de Carvalho Guimarães Rosa é famosa no Brasil por ser a segunda mulher do escritor Guimarães Rosa. Em Israel, nos Estados Unidos, na Alemanha e em boa parte da Europa, ela é, também, reconhecida por muito mais do que isso. Conheceram-se em 1938, no consulado brasileiro em Hamburgo, onde ela trabalhava e ele chegou para ser cônsul adjunto. Conheceram-se, amaram-se e casaram-se, da forma como era possível, num Brasil que ainda não admitia o divórcio, e viveram felizes até a morte dele, em 1967 . Naquele ano entrou em vigor a circular secreta 1.127, da ditadura do Estado Novo, que restringia, praticamente proibia a entrada de judeus no Brasil. Na Alemanha, com a rápida ascensão dos nazistas ao poder, eles estavam sendo perseguidos de forma implacável e organizada, nos primórdios do que hoje chamamos O Holocausto. A fuga para o Brasil, assim, estava impedida.
Aracy, modesta funcionária sem garantias diplomáticas, empenhou-se bravamente em facilitar a vida dos que, apesar de tudo, procuravam o consulado brasileiro. Ignorou, por conta própria, a circular do governo ditatorial, e astutamente enfiava entre a papelada que o cônsul-geral devia assinar, diariamente, autorizações para entrada no Brasil. Fez mais: valendo-se de seu passaporte diplomático, conseguiu arrancar da pesada burocracia nazista atestados de residência para os fugitivos que, vindo de outras cidades do país, não teriam direito à atenção do consulado de Hamburgo. O cônsul Guimarães Rosa sabia desses esforços, apoiava a mulher, e por causa disso e de declarações feitas contra a regime nazista, chegou a ser denunciado às autoridades do Reich.
Em 1942, quando submarinos alemães afundaram navios brasileiros, o Brasil finalmente declarou guerra à Alemanha. Os funcionários da embaixada ficaram sob custódia por mais de quatro meses, em Baden Baden, até serem trocados por diplomatas alemães igualmente em custódia, em nosso país. O casal foi morar no Rio de Janeiro e Guimarães Rosa, já definitivamente seduzido pela literatura, publicou Sagarana em 1946. Continuou, porém, diplomata, ocupou vários cargos e recebeu missões igualmente importantes. Assim, só voltaria a publicar dez anos depois (Corpo de Baile e o monumental Grande Sertão – Veredas vieram a público em 1956). Viúva embora, Aracy continuou empenhada em defender os perseguidos políticos – durante a ditadura militar, abrigou em seu apartamento foragidos das forças da repressão, entre eles o cantor e compositor Geraldo Vandré.
Por tudo isso, ela é a única mulher citada no Museu do Holocausto, de Jerusalém, como um dos escassos 18 funcionários diplomáticos que ao longo da perseguição nazista se empenharam em ajudar judeus fugitivos (é a única funcionária consular, não cônsul ou embaixador, nessa relação). Ela ainda dá nome a um bosque do Keren Kayemet, nas redondezas da cidade, e seu nome está relacionado no Museu do Holocausto, em Washington. Todas essas informações, e muitas outras, estão no artigo “D. Aracy, o anjo de Hamburgo”, publicado na edição número 19, ano IV, da “Revista 18”, do Centro da Cultura Judaica de São Paulo, pelo jornalista e cientista político René D. Decol, filho de sobreviventes do Holocausto.
Por minha conta, acrescento mais essas. Durante anos o bibliófilo José Mindlin, guarda cuidadoso de numerosos originais de Guimarães Rosa, tentou publicar em livro os saborosos cartões postais que o escritor enviava às netas de Aracy, Beatriz e Vera, filhas de Eduardo, filho do primeiro casamento da mulher. Elas resistiam, achavam aqueles papéis coloridos e alegres coisa íntima, destinados apenas ao desfrute familiar. Persistente, sobretudo quando se trata de livros, Mindlin conseguiu a autorização das netas. Era necessária, também, a concordância dos herdeiros diretos do escritor, depositários dos direitos sobre sua obra e figura. Quem já tentou publicar alguma coisa de e sobre Guimarães Rosa sabe quanto a família é dura e relutante. Mindlin, em todo caso, conseguiu outra vitória.
“Ooó do Vovô!” veio a público, finalmente, em 2003. Parceria entre a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) e a Imprensa Oficial do Estado. Vera, psiquiatra em São Paulo, explica o título estranho do livro: “Demorei a falar (por pura preguiça, diziam), limitava-me a apontar para os objetos que queria pegar, chamando-os de ‘ooó’. Daí meu avô carinhosamente chamar-me de ‘ooó do vovô´. Nos cartões e nas anotações, ele recriava um universo completamente familiar para nós dois, reproduzindo sons, imagens, objetos e personagens, numa linguagem sedutora.”
Ao concordar com a publicação, a família Guimarães Rosa exigiu que constasse do livro a observação de que Vera e Beatriz não são netas sanguíneas do escritor.

Fazer a história possível

Edgar Morin é um respeitado intelectual francês com biografia comum aos da sua idade, sobretudo franceses: lutou na Segunda Guerra Mundial, filiou-se ao Partido Comunista, onde teve vida desconfortável, pois estava sempre disposto a questionar ordens e perguntar por quês e para quês. É sociólogo, antropólogo, historiador e filósofo. Em plena campanha eleitoral pela presidência da França, escreveu um artigo provocadoramente intitulado “Se eu fosse candidato”, do qual Clóvis Rossi deu pequena notícia na sua coluna na Folha de S.Paulo. Para um candidato, ainda que faz-de-conta, é um texto tão surpreendente quanto assustador.

De saída, alerta seus “eleitores” para o fato de que a França não vive isolada nem está dentro de um mundo imóvel. Ao contrário, integra-se a um sistema planetário, que “está condenado à morte ou à transformação – nossa época de transformações tornou-se uma transformação de época”. Sendo assim, esquiva-se de fazer as promessas comuns de candidatos presidenciais – saúde, educação, moradias, estradas, empregos. Em vez disso, pretende mostrar o caminho para uma Terra Pátria e uma Sociedade Mundo, com a reforma da Organização das Nações Unidas para suplantar a soberania absoluta dos Estados-nações, embora reconhecendo plenamente sua autoridade sobre tais problemas, “que não são de vida ou morte para o planeta”.

À Europa, especialmente, apresentaria um grande desafio: “Reformar sua própria civilização com o aporte moral e espiritual de outras civilizações; contribuir para um novo tipo de desenvolvimento para as nações africanas; regulamentar os preços dos produtos fabricados a custo mínimo com a exploração dos trabalhadores asiáticos; elaborar uma política comum de inserção dos imigrantes; enfim e sobretudo, abrir uma janela exemplar de paz, compreensão e tolerância”. Com tal firmeza que se propõe chegar até a uma intervenção em Darfour, Chechênia, Oriente Médio “para evitar a guerra de civilizações”.

À França não oferece um programa, inoperante em situações de mudanças, mas uma estratégia geral. Começaria com encontros entre parceiros sociais, um sobre emprego e salários, outro sobre aposentadorias. Depois viriam dois comitês: um para lutar contra as desigualdades, começando pela que envolve lucros e remunerações exageradas, de um lado, e insuficiências (como o nível e a qualidade de vida na base social), de outro; o segundo para reverter o desequilíbrio, agudizado depois de 1990, na relação capital-trabalho. Um terceiro comitê se ocuparia das questões ambientais e das transformações sociais e humanas que elas exigem.

Indicaria o caminho de uma “política de civilização” que restaurasse a solidariedade, fizesse recuar o egoísmo e reformasse “nossa sociedade e nossas vidas”. Afirma, a propósito: “Nossa civilização está em crise. Onde chegou, o bem-estar material não levou necessariamente o bem-estar mental (...) O desenvolvimento econômico não provocou o desenvolvimento moral.” Assim, ele criaria Casas de Fraternidade, nas cidades e bairros das metrópoles, como Paris, para socorrer os desvalidos em geral – e aqui apresenta uma série de questões que seria longo demais enumerar. Ele cita a necessidade de várias “desintoxicações” da sociedade, uma das quais a da publicidade, que torna sedutores produtos supérfluos.

No campo da educação, proporia reformas revolucionárias para acabar com a compartimentabilização do saber, que se aprofunda cada vez mais. Na verdade, essa é uma preocupação que Morin traz de longe e ocupa boa parte de sua obra e de seus escritos recentes. Enfim, considera que “a reforma da política, a reforma das formas de pensar, a reforma da sociedade, a reforma da vida se conjugarão para levar a uma metamorfose da sociedade. Os futuros radiosos estão mortos, mas abriremos caminho para um futuro possível.”

Com certeza Edgar Morin não pensa em vencer uma eleição, nem imagina que tais tarefas possam ocupar o tempo de um presidente da República, e aí está o que seu artigo, no meu entender, tem de assustador. Tudo o que ele indica é clara e urgentemente necessário, mas como fazer para dar conta de tantos e tão grandes desafios? Com seu espírito contestador, talvez tenha esquecido, já nos tempos de militante do PC, da muito citada frase de Marx, no “18 Brumário de Luís Bonaparte”: “Os homens fazem a própria história, mas nunca a fazem como querem.”

As igrejas e os deuses sob ataque II

Nos últimos quinhentos anos, sobretudo, cada vez que a ciência fez uma descoberta importante e inovadora, precisou enfrentar resistências das igrejas, as cristãs em particular. No final do século 15, começo do 16, o astrônomo polonês Nicolau Copérnico, sendo ele próprio um servidor do Vaticano, guardou até a morte os originais de seu livro De revolutionibus orbium coelestium (Das revoluções do orbe celeste) no qual cálculos minuciosos e precisos atestavam que a Terra gira ao redor do Sol, e não o contrário, como se acreditava. Com medo da Inquisição, mandou imprimi-lo na Alemanha protestante e reza a lenda que, ao receber o primeiro exemplar das mãos de um mensageiro enviado às pressas, sequer teve tempo de folheá-lo – morreu instantaneamente. A Igreja Católica, na verdade, não lhe deu grande importância, no momento – mas na Alemanha protestante Martinho Lutero trovejou: “A Bíblia diz que Josué mandou o Sol e a Lua pararem no céu, e não a Terra”. Referia-se ao episódio em que os judeus fugitivos do Egito, agora liderados por Josué, o substituto do patriarca Moisés, lutaram até o fim do dia para conquistar a cidade de Gabom na terra prometida e receberam de Jeová a dádiva de mais algumas horas de luz para consolidar a vitória.

Nos anos seguintes, o italiano Galileu Galilei, muito menos discreto do que Copérnico, fez um carnaval com a teoria heliocêntrica, construiu um telescópio e conseguiu ver quatro minúsculos corpos luminosos girando em torno de Júpiter, e não da Terra. Os sábios da Inquisição sequer concordaram em olhar pelo telescópio, como ele os desafiou – e não fosse Galileu um amigo do papa, teria acabado na fogueira, como Giordano Bruno. Quando completou seus cálculos, Copérnico recebeu de um assistente, tão bom matemático quanto ele, uma observação de surpresa: “Se for assim, Vênus terá fases, como a Lua”. Ao que ele respondeu, sabiamente: “Um dia o bom deus proverá ao homem meios para comprovar isso”. Além de Galileu, muitos outros cientistas, como Johanes Kepler, atestaram que os cálculos de Copérnico estavam corretos, e tinham os telescópios, cada vez mais precisos e poderosos, para o confirmar. Mas só em 1822 a Igreja, discretamente, retirou o De revolutionibus do Index de obras proibidas.

Continua assim nos nossos tempos – a Igreja combate o uso da camisinha nas relações sexuais para prevenir o contágio pela Aids, recusa as pesquisas com células tronco, é contra o aborto, em qualquer circunstância. Em todos esses anos, os cientistas tiveram enorme dificuldade para defender suas descobertas contra esse obscurantismo religioso. Muitos porque eram, eles próprios, crentes em deus. Mas a maioria por receio de afrontar uma opinião pública avassaladoramente submissa às ordenações dos sacerdotes – cristãos católicos ou protestantes, maometanos, hinduístas e o que mais exista em matéria de crença na divindade.

Essa realidade, porém, começa a mudar. Já temos no Brasil, devidamente traduzidos do inglês, uma meia dúzia de livros produzidos na Inglaterra e, principalmente, nos Estados Unidos, em que cientistas de renome dispõem-se não apenas a defender as posições da ciência, mas a atacar com surpreendente aspereza o obscurantismo religioso. Fazem isso não apenas para defender as verdades científicas, mas como um alerta para os perigos que corre a civilização, com a possibilidade de que algum político submisso a esses mandamentos religiosos chegue ao poder. No caso específico, referem-se aos Estados Unidos, “a única superpotência mundial da atualidade, perto de ser dominada por eleitores que acreditam que o universo inteiro começou depois da domesticação do cachorro”. Sam Harris, que escreveu essa frase áspera no pequeno livro “Carta a uma nação cristã”, é o mais implacável desses autores. Logo de saída, cita uma enfiada de dados revelados por uma pesquisa do Instituto Gallup: 53% dos americanos são criacionistas, o que significa que apesar de um século inteiro de descobertas científicas que atestam como é antiga a vida na Terra, e mais antigo ainda nosso planeta, acreditam que o cosmos inteiro foi criado há seis mil anos.
“Os que têm o poder de eleger presidentes, deputados e senadores – e muitos dos que são eleitos – acreditam que os dinossauros sobreviveram ao dilúvio, junto com seus pares, na arca de Noé (...) e que os primeiros membros da nossa espécie foram modelados a partir do barro e do hálito divino, em um jardim com uma cobra falante, pela mão de um deus invisível”. Esses crentes, diz Harris citando, ainda, a pesquisa Gallup, “não se preocupam com o destino da civilização”, pois “nada menos do que 44% da população americana está convencida de que Jesus vai voltar para julgar os vivos e os mortos em algum momento dos próximos 50 anos”. Lembra que a profecia bíblica afirma que Jesus voltará à Terra só depois que as coisas derem “terrivelmente errado; portanto, não é exagero dizer que se Londres, Sidney ou Nova York de repente virarem uma bola de fogo, no centro de uma explosão nuclear, uma porcentagem significativa da população americana veria um lado auspicioso nisso, pois a melhor coisa que pode acontecer ao mundo está prestes a se realizar: a volta de Jesus Cristo”.

Há muito que meditar, a partir da argumentação de Sam Harris e de seus parceiros Christopher Hitchens e Richard Dawkins. Algo de novo e surpreendente parece estar no ar. Que não se trata apenas de excentricidades de jovens buliçosos atesta-o o fato de que o livro de Dawkins, que comentarei proximamente, recebeu uma arrebatadora e elogiosa definição do crítico do jornal Independent: “Um ataque brilhante à onda de superstição que mais uma vez percorre o mundo, pelo grande cientista que, ao longo de sua carreira, tem demonstrado a força da razão sóbria e incisiva para explicar a vida”. Para um jornal americano chamar a crença religiosa de superstição, é sinal de que as coisas começam a mudar radicalmente.

As igrejas e os deuses sob ataque I

Nos tempos modernos, a mais feroz disputa entre ciência e religião vem sendo travada em torno da evolução das espécies pela seleção natural. Ela põe por terra a crença do cristianismo e do judaísmo sobre a criação do mundo e dos seres que o habitam em uma semana, por um deus todo poderoso que se deu ao luxo de descansar no sétimo dia. Comumente, acredita-se ser ela uma teoria formulada pelo naturalista inglês Charles Darwin, na segunda metade do século 19. Sendo uma teoria, dependeria ainda de provas, argumentam os religiosos.

Não é bem assim – no tempo de Darwin a evolução já era coisa firmada e confirmada por meio de incontáveis descobertas da paleontologia. O grande mistério da época era como se dava a evolução – e Darwin solucionou-a com a idéia da seleção natural, esta sim, ainda uma teoria não confirmada cientificamente. Darwin hesitou muito tempo em publicar seu trabalho, certo de que ele provocaria reações da Igreja. Isso realmente aconteceu e embora hoje pareçam hilariantes os acalorados debates havidos na época a respeito dessa controvérsia, ela ressurgiu nos anos recentes, sobretudo nos Estados Unidos, onde se tenta obrigar as escolas a ensinarem, junto com a evolução, a crença religiosa de que todos os seres vivos foram criados por deus, numa tacada só.

O biólogo Richard Dawkins tem sido um dos mais ardorosos participantes dessa batalha, embora não seja exatamente um americano. Na verdade é difícil definir o que ele é – nasceu em Nairobi, no Quênia, em 1941, cresceu na Inglaterra, formou-se na consagrada Universidade de Oxford, deu aulas em Berkeley, nos Estados Unidos, e atualmente leciona Compreensão Pública da Ciência em Oxford. Parece uma disciplina estranha, mas deve ter sido criada especialmente para ele, um elegante expositor das realidades científicas para o público leigo, como atestam seus livros “O Relojoeiro Cego”, “A Escalada do Monte Improvável”, “O Capelão do Diabo” e “O Gene Egoísta”. Todos forneceram abundante munição para a guerra contra os defensores do desígnio divino. Em seu livro mais recente, ele abandona a posição defensiva normalmente adotada pelos cientistas e parte para o ataque contra os fundamentos da religião. Não por acaso, seu título é “Deus, um Delírio”.

São 520 páginas de argumentos apresentados de maneira tão clara e lógica quanto contundente. Impossível dar aqui um resumo competente deles – mas é possível ter uma idéia do conteúdo com os títulos dos capítulos que o compõem: “Um Descrente Profundamente Religioso”, “A hipótese de que Deus Existe”, “Por Que Quase com Certeza Deus não Existe”, “As Raízes da Religião”, “As Raízes da Moralidade – Por Que Somos Bons?”, “O que a Religião Tem de Mau?”, “Infância, Abuso e a Fuga da Religião”, “Uma Lacuna Muito Necessária?” O objetivo confesso desse livro – está assinalado na contracapa da edição brasileira – é não apenas provocar os religiosos convictos, mas principalmente levar os religiosos “por inércia” a pensar racionalmente a sua crença, trocando-a pelo orgulho ateu e pelo amor à ciência.

Vou limitar-me a apresentar alguns argumentos do capítulo “O Que a Religião Tem de Mau?” Nele Dawkins relata que muitos companheiros cientistas, convictos como ele de que deus não existe, procuram-no para argumentar: o que a religião tem de errado? Ela faz tanto mal assim para que devamos combatê-la? Por que não deixar para lá, como se faz com Touro e Escorpião, a energia dos cristais e coisas assim? Não são só bobagens inofensivas? E para completar: sua hostilidade não faz de você um ateu fundamentalista, tão fundamentalista quanto aqueles malucos do Cinturão Bíblico?”

Dawkins responde com poucas e boas palavras: “Os fundamentalistas acreditam que estão certos porque leram a verdade num livro sagrado, e sabem, desde o começo, que nada os afastará de sua crença (...) Pelo contrário, as coisas em que acredito, como cientista (a evolução, por exemplo), acredito não porque li num livro sagrado, mas porque estudei as provas.” E garante: “Quando um livro de ciência está errado, alguém acaba descobrindo o erro, e ele é corrigido nos livros subseqüentes. Isso, evidentemente, não acontece com os livros sagrados (...) Acreditamos na evolução porque as evidências a sustentam, e a abandonaríamos num piscar de olhos se surgissem novas evidências que a desmentissem. Nenhum fundamentalista de verdade diria uma coisa dessas”.

Ele recorre a numerosos relatos de acontecimentos ou práticas que confirmam suas convicções. No Afeganistão, sob o Talibã, a punição oficial para a homossexualidade é enterrar o acusado, vivo. Como esse suposto crime é um ato individual, praticado por adultos com mútuo consentimento, sem fazer mal a ninguém, “temos aqui a marca registrada do absolutismo religioso”. O Talibã, com certeza, baseia-se num grotesco fundamentalismo religioso. Mas, argumenta Dawkins logo em seguida, “meu próprio país não tem do que se vangloriar: o comportamento homossexual privado foi uma transgressão criminosa na Inglaterra até – inacreditavelmente – 1967”. E lembra que em 1954 o matemático britânico Alan Turing, candidato junto com John von Neumann ao título de pai do computador, cometeu suicídio depois de ser condenado pela contravenção de manter comportamento homossexual privado. Na verdade, argumenta o autor, ele deveria ter sido aclamado como herói nacional, pois foi a cabeça essencial do serviço que, durante a Segunda Guerra Mundial, desvendou os códigos utilizados pelo Exército Alemão para transmissão de suas ordens.

Mas ele tem histórias contemporâneas para justificar seu empenho em combater o fundamentalismo e tentar abalar a tranqüilidade dos religiosos não fundamentalistas. “Voltando ao Talibã americano, ouça Randall Terry, fundador da Operação Resgate, uma organização criada para intimidar médicos que se dispõem a fazer abortos: ‘Quando eu, ou pessoas como eu, estiver governando o país, é bom você fugir, porque vamos encontrá-lo, vamos julgá-lo e vamos executá-lo. Estou falando sério.” E depois, uma amostra de sua pregação ao público geral: “Quero que você se deixe levar por uma onda de intolerância. Sim, o ódio é bom (...) Nosso objetivo é uma nação cristã. Temos um dever bíblico, somos chamados por deus a conquistar este país. Não queremos tempos iguais. Não queremos pluralismo (...) Precisamos de uma nação cristã, construída na lei de deus, nos Dez Mandamentos. Sem pedidos de desculpa.”

Poderia pegar no livro mais uma dezena de casos parecidos, acontecidos no mundo cristão e no mundo muçulmano, utilizados por Dawkins para justificar sua má vontade com a fé religiosa. Castigos irracionais ao homossexualismo, à prática do aborto, ao casamento com crentes de outras religiões, a coisas indefiníveis como a blasfêmia – um crime que, afirma o autor, ainda consta das leis inglesas. Inacreditável. Daí a certeza do autor de que as religiões cada vez mais se tornam uma ameaça à sobrevivência da democracia política, da convivência pacífica, na sociedade, de idéias e crenças diferentes ou divergentes, e da pesquisa científica em geral.
Registro, apenas, que “Deus, um Delírio”, foi um sucesso de vendas, nos Estados Unidos e na Inglaterra, desde o lançamento, em 2006. Surpreende-me que também tenha conseguido elogios consagradores da imprensa. “Um ataque brilhante à onda de superstição que mais uma vez percorre o mundo pelo grande cientista que, ao longo de sua carreira, tem demonstrado a força da razão sóbria e incisiva para explicar a vida”, escreveu Johann Brown no Independent ; “Em ‘Deus, um Delírio”, a debilidade intelectual da crença religiosa é desnudada sem piedade, assim como os crimes cometidos em nome dela”, sentenciou The Times; “Este livro é um apelo declarado para que não nos acovardemos mais”, pregou The Guardian.

Deus, um Delírio
Richard Dawkins
Tradução de Fernanda Ravagnani
Quinta reimpressão
Cia. das Letras
Todos os outros livros de Richard Dawkins aqui citados foram editados pela Cia. Das Letras e podem ser encontrados nas livrarias.

Nem tudo que parece é

Está disponível na Internet um vídeo interessante, que merece ser visto e, sobretudo, ouvido. Informo, de saída, que é uma dessas obras aparentemente inverossímeis, que tratam de conspirações diabólicas, em que homens mal intencionados unem-se para ferrar a humanidade. Chama-se “Zitgeist, the movie”, sendo zitgeist uma palavra alemã que significa alguma coisa parecida com “o espírito do tempo”, ou “o tempo de uma cultura”. Tem três partes: uma trata das religiões, o Cristianismo em particular, e é o motivo que me leva a citá-lo; a segunda é sobre o atentado contra as torres de Nova York; e o terceiro, a união dos grandes banqueiros para dominar o mundo por meio do dinheiro, muitíssimo dinheiro que nós, otários, entregamos para eles. O autor é o americano Peter Joseph, que aparentemente trabalhou sozinho numa pesquisa gigantesca – para justificar as três partes da história, ele apresenta um rol de obras consultadas portentoso. Peter expõe sucintamente seu objetivo: inspirar as pessoas a olharem o mundo de uma perspectiva mais crítica e entenderem que, muitas vezes, coisas que elas acham que são, na verdade não são. Convém, insisto, aplicar esse mandamento ao próprio filme que o anuncia.

Sobre as religiões, ele começa afirmando que todas descendem da egípcia adoração do deus Orus (o Sol), e cita uma série de coincidências de que, confesso, jamais ouvira falar – e pretendo eu próprio pesquisar para comprovar sua veracidade, atento à advertência feita pelo autor: não basta dar uma olhada rápida no Google, é preciso malhar nas bibliotecas. Todas têm um deus nascido em 25 de dezembro, de uma mãe virgem, sob a luz de uma estrela gigantesca, começaram a se revelar aos 14 anos, iniciaram sua pregação às gentes aos 30, tinham doze seguidores (ou doze irmãos), foram mortos e ressuscitaram. Compõem esse rol de superdotados o já citado Orus egípcio, Athis, da Frigia, Krishna, da Índia, Dionísios, da Grécia, Mitra, da Pérsia, e o nosso Jesus.

De onde surgiram essas coincidências? Da Astrologia, garante Peter. 25 de dezembro é o momento em que Sirius, a maior estrela do firmamento, brilha com toda a intensidade. Os números 12, 14, 30 têm lá seus significados especiais. Até a cruz, tão representativa do Cristianismo, vem da Astrologia, que divide o círculo celeste em quatro partes com duas linhas retas que se cruzam. Tudo isso está minuciosamente explicado e justificado e é impossível resumir aqui. Nem vale à pena.

O filme é interessante de ver, é daqueles que não dá folga ao espectador, desenvolve-se sempre em alta velocidade e é preciso estar atento para não perder as informações e os comentários, muitas vezes jocosos. O capítulo das religiões, por exemplo, começa com o narrador citando que deus escreveu suas leis em duas pedras, ameaçou os que as desrespeitassem uma vez sequer com a tortura infinita de um local quente, cheio de fogo. Enquanto ele fala, sucedem-se em rápida seqüência, na tela, imagens de Moisés com as tábuas dos mandamentos, os judeus aproveitando a ausência do líder para adorar um bezerro de ouro, o inferno fumegante e, para encerrar, uma mensagem curta que ocupa toda a tela: deus ama você.

Veja em Zeitgeist e procure o site do Peter, com todas as explicações necessárias, e uma infinidade de comentários a favor e contra. Divirta-se.

Se as águas chegarem lá

Os adversários da transposição do rio São Francisco têm argumentos sólidos e convincentes para sustentar sua causa. O engenheiro João Alves Filho, ex-governador de Sergipe, resumiu-os em quatro pontos básicos, em artigo publicado na Folha de S.Paulo: 1) a transposição não tem como objetivo salvar a população nordestina da seca, pois apenas uma pequeníssima parte da região semi-árida receberá a água para uso domiciliar; ela irá para o agronegócio, que a utilizará a preço altíssimo, o que inviabilizará sua condição de negócio, se ela não for subsidiada pelo governo, a vida inteira; 2) não há falta de água no Nordeste, ela existe em tal quantidade que daria para abastecer plenamente a população que ali vive; precisa ser tirada do fundo da terra, e isso também tem seu preço, menor, entretanto, do que aquele pago pela transposição do rio; 3) o Rio São Francisco está na UTI e a transposição poderá decretar sua morte; 4) Lula mentiu quando, para interromper a primeira greve de fome de dom Cappio, certamente com medo de perder a reeleição, prometeu discutir o assunto com ele, com a sociedade civil e com os movimentos sociais. Não fez nada disso.
O tiro final: uma parte apenas do dinheirão gasto com a transposição daria para implementar um amplo programa de construção de açudes, para regularizar o aproveitamento da águas das chuvas, abundante na região em certas partes do ano, e abrir poços que a tragam lá das profundezas.
A verdadeira questão que se coloca aí é aquela mesma que surgiu no começo do governo petista, quando foi criado o Bolsa Família: ele alivia a fome imediata, mas não resolve o problema verdadeiro, que é a exclusão social e econômica das populações beneficiadas. É claro que é mais urgente matar a fome e a sede daquela gente, mas também é claro que tanto o dinheiro do Bolsa Família quanto a água das cisternas permitirão, no máximo, mais conforto para que se perpetue a triste situação social, econômica e cultural ali vigente. Dar início ao aproveitamento das excepcionais condições de sol e calor ali reinantes para implantar uma sólida estrutura de produção de frutas, para as quais há mercados ávidos nos Estados Unidos e, sobretudo, na Europa, deve ser uma solução para o caso.
Lamentável é que as precárias condições em que se desenrola o processo político brasileiro imponham ao presidente da República a necessidade de mentir, para realizar seus projetos sem risco de perder o eleitorado que o consagrou ao longo dos anos; e que uma iniciativa, assim portentosa, talvez capaz de alterar profundamente as estruturas do país, como aconteceu nas décadas de 1930 e 1940, dependa exclusivamente da ação e dos dinheiros governamentais, enquanto os grandes interessados do mundo empresarial apenas aguardam que as águas cheguem lá – do mesmo modo que esperaram, naqueles anos distantes, que o aço saísse de Volta Redonda para as suas fábricas.

O verdadeiro semi-árido

Em artigo recente no O Estado de S. Paulo, Washington Novaes apresenta um resumo resumido do livro A Potencialidade do Semi-árido Brasileiro, do geólogo e hidrólogo piauiense Manoel Bonfim Ribeiro -- que trabalhou em projetos de irrigação, construiu açudes e adutoras e foi diretor da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco. Mais do que credenciado, portanto, para falar sobre a questão da água no Nordeste, em geral, e da discutida transposição das águas do Rio São Francisco. Como muitos cientistas, Ribeiro assegura que no semi-árido o problema não é de escassez mas de gestão. E cita uma enfiada de números de nos deixar de queixo caído, pelo menos a mim, de escasso conhecimento sobre essas questões.
O Nordeste tem 70 mil açudes, um a cada 14 quilômetros quadrados. É a região mais açudada do mundo. Nos 27 maiores desses açudes estão acumulados 21 bilhões de metros cúbicos de água, onze vezes a que faz os encantos da Baía da Guanabara, no Rio de Janeiro. Aqui ele se permite uma boutade e comenta: "O semi-árido é uma ilha cercada de água doce por todos os lados". Mas há mais: só nos oito grandes açudes do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, para onde serão levados 2 bilhões de metros cúbicos da água transposta do São Francisco, já se acumulam 12 bilhões de metros cúbicos de água pluvial. Dessa água estocada nos açudes, 30% se evaporam (o que vai acontecer, também, com certeza, com as águas da transposição). Mas há na região, ainda, a possibilidade de extrair 20 bilhões de metros cúbicos do subsolo (atualmente, extrai-se apenas 1 bilhão de metros cúbicos).
A pobreza do sem-árido, portanto, está no homem, não na terra, nem no clima -- e a conclusão não é minha, mas do autor. Nos homens, acrescento, pois é uma questão de falta de informação e conseqüente falta de conhecimento. Mas também de falta de vontade. Manoel Bonfim cita, a partir daí, uma enxurrada de riquezas que poderiam ser exploradas desde que solucionada adequadamente essa questão da água e do seu uso. Piscicultura ("pode-se multiplicar por dez a produção de peixes brasileira"), apicultura (cada colmeia, na região, produz de 80 a 100 quilos de mel por ano, enquanto na Europa conseguem-se modestos 20 a 30 quilos). Seguem-se a caprinocultura, caju e suas castanhas, de larga aceitação no exterior, umbu, cera da carnaúba, fibras vegetais como o caroá, sisal, algodão.
No prefácio, o "pai do Proálcool, professor J. W. Bautista Vidal, admira-se: "É como se Bonfim estivesse redescobrindo um novo Semi-Árido, mais verdadeiro que o anterior, fundamentado em peculiaridades pouco conhecidas, algumas únicas em todo o planeta". Nada indica, portanto, que a transposição das águas do São Francisco, sozinha, vá solucionar algum problema pois com ela ou sem ela, a verdadeira questão continuará em pé: a gestão. Ou melhor, a capacidade de buscar para todos os males as soluções mais simples, mais baratas, conseqüentemente mais adequadas e mais eficazes. Entra governo, sai governo, e fica a pergunta: poderá o Nordeste algum dia contar com essa simplicidade?
Almyr Gajardoni

O Modernismo é a grande revolução brasileira

D.O. Leitura
Janeiro/Fevereiro de 2002

O Modernismo é a grande revolução brasileira

José Mindlin e Antonio Candido

Entrevista a Walnice Nogueira Galvão


Para falar sobre o Modernismo, dispuseram-se a atender à solicitação de D.O Leitura o crítico literário Antonio Candido e o bibliófilo José Mindlin. Ambos tiveram sua trajetória marcada pelo contacto com o Modernismo e com os modernistas. Ambos se entregaram de coração à nova estética, que divulgaram, estudaram e publicaram. Antonio Candido, quando crítico militante de jornal, dedicou rodapés a seus escritores mais consagrados, como Mário de Andrade e Oswald de Andrade, e a outros que iriam surgindo, como Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, João Cabral de Mello Neto. Mais tarde, introduziria o estudo do movimento na Universidade de São Paulo. Quanto a José Mindlin, além de colecionar as primeiras edições de todos eles, foi ainda pioneiro na iniciativa de reeditar em fac-símile as principais revistas do movimento. Ambos nos falam dessas experiências e da amizade pessoal que delas fez parte.


Gostaria que ambos relatassem seus primeiros contatos com o Modernismo. A transição do cânone mais tradicional para o cânone modernista implicou em transgressão ou aventura estética? Quem foram seus Virgílios, ou seja, os mediadores desse percurso? Que papel tiveram Henrique Mindlin e Rubens Borba de Moraes para José Mindlin, ou Mário de Andrade e Oswald de Andrade para Antonio Candido?

JOSÉ MINDLIN – Curiosamente, meu contato com o Modernismo foi tardio. Cresci num ambiente cultural, meu pai era apaixonado por artes plásticas, mas era um autodidata que chegou ao Brasil em 1910. Menos de dois anos depois foi fundada a Sociedade de Cultura Artística e ele foi um dos primeiros sócios pois era amigo do Nestor Rangel Pestana. Mas o interesse dele por pintura, naquela época, e até praticamente os anos 30, era pela pintura acadêmica, pois o ambiente paulista era todo ligado a esse tipo de pintura. Freitas Valle era um dos mentores da arte, quando ia a uma exposição e dizia que os quadros eram bons, vendiam-se todos, mas quando dizia que não eram, coitado do artista, estava perdido. Em compensação, ele sempre escolhia um quadro, quando gostava. Era esse o ambiente de São Paulo. Papai começou a perder o interesse pela pintura acadêmica perto dos anos 30 e se voltou para os holandeses e flamengos do século 17. Ele morreu em 39 com 52 anos, não chegou ao Modernismo e nós também praticamente não tivemos contato até então. Meu irmão Henrique teve um pouco mais do que eu. Lembro que naquela época o Mário de Andrade era considerado meio maluco pela sociedade paulistana. Pagu, por exemplo, a gente ouvia falar dela como uma pessoa vulgar, tinha expressões chocantes na maneira de falar, não era tida como de bom nível normal na sociedade. Só muito mais tarde é que vim a dar o devido valor a ela. Mas eu me lembro – deve ter sido em 27, 28 – de uma poesia dela que saiu publicada: “Meu coração é uma máquina registradora/o que ele quer é nota”. Dizer que isso é poesia, a gente achava impossível. Eu diria que a minha integração com o Modernismo foi a partir de 40. Henrique foi morar no Rio, era um arquiteto modernista, mas não desde o começo. Foi aluno do Cristiano das Neves, no Mackenzie, que era o próprio arquiteto acadêmico. Ele e outros se afastaram da arquitetura do Cristiano das Neves, mas nos primeiros anos construíram residências neocoloniais, coisas assim.

Esse era o Cristiano Stockler das Neves?

JM – Era.

Ele era da Arquitetura ou da Engenharia do Mackenzie?

JM – Da Arquitetura. Ele fez a Sorocabana, o prédio do Fórum, o Palácio da Justiça, tudo muito convencional. Aí o Henrique, no Rio, em 41, ganhou o primeiro prêmio num concurso para um novo prédio do Itamaraty e fez uma coisa primorosa de arquitetura moderna, integrado com o primeiro grupo de arquitetos modernistas do Rio: o Reidy, os irmãos Roberto, Vital Brasil, todos eles. Também fiquei conhecendo a todos, por intermédio do Henrique. Ele tinha boa amizade com o Portinari, a quem a gente ainda olhava com certa reserva. Se você pergunta como eu passei a aceitar o “cânone” do Modernismo – gostei da expressão, nunca pensei em termos de cânone – eu acho que foi um estalo que deu. Não há um momento definido para isso. Tenho usado o que aconteceu comigo como um bom exemplo da evolução do gosto, que a gente vai mudando no curso da vida. Sempre usei esse exemplo para mostrar que gosto não é critério de julgamento da obra de arte. A gente pode não gostar, mas daí a dez ou vinte anos pode mudar de idéia. Van Gogh é o primeiro exemplo que se pode citar: os contemporâneos achavam que era uma loucura, e era, para a época. Portinari, no início, também era considerado extravagante. Meu julgamento demorou para se formar. Mas felizmente isso me aconteceu quando tinha trinta e poucos anos, e assim deu para aproveitar o resto da vida apreciando devidamente o espírito moderno. De Picasso, por exemplo, eu tinha a sensação de ser cabotino, não via nele o artista. Gostava da primeira fase, a fase azul e rosa. Mas eu vi em 66 uma retrospectiva dele em Paris que me mudou radicalmente: concluí que esse homem era um gênio, porque a gente via como de um ano para outro mudava completamente o estilo, dominava a técnica de tal forma que não se podia negar que ele tinha o direito de fazer o que quisesse. Aí passei a respeitar mesmo a obra de Picasso. Curiosamente, de Chagall e Matisse gostei toda a vida, desde que vi as primeiras obras. Braque eu achava incompreensível, hoje acho que é uma das maiores figuras do Modernismo. Tinha uma certa admiração pelo Washt Rodrigues, por exemplo, como documentarista e por seu julgamento artístico. Depois soube que ele tinha estado em Paris na mesma pensão do Modigliani, e que eles se davam. Naquela época, Modigliani teria dado uma porção de desenhos ao Washt Rodrigues que jogou fora. Isso já é um caso extremo, eu não diria que achasse uma droga tudo isso, mas demorei a apreciar. Agora, dos anos 40 em diante, sem a menor dúvida eu aderi ao “cânone”. A pintura acadêmica não morreu, para mim, mas passou a ter muito menos interesse. Até com certo exagero, porque mesmo na pintura acadêmica, alguns são bons. Você pega Almeida Júnior, o próprio Pedro Alexandrino, são bons pintores, não é? Mas de um modo geral perdi o interesse. Então, deixa ver, eu estava... às vezes a gente perde o fio...

O senhor respondeu a primeira parte. Quer que eu passe a pergunta para o Antonio Candido...

JM – Eu acharia interessante... Quando falo para a Guita que estou com arteriosclerose precoce a única coisa que ela contesta é o precoce.

Poderia falar sobre a primeira...

ANTONIO CANDIDO – Eu estou mais animado porque pensava que era para falar historicamente sobre essa questão de arte moderna... Sobre a experiência da gente é canja, não tem problema.

Então ótimo. Vocês não sabiam que são interessantes? Fale então de seus primeiros contatos com o Modernismo.

JM – Olha, eu me lembrei agora do que queria dizer... É melhor continuar, se não esqueço outra vez.

Claro

JM – Meu interesse por livros começou desde a infância. Henrique e eu íamos às livrarias de São Paulo quando eu tinha sete ou oito anos. Para a Francisco Alves, aquela coisa... A partir dos treze anos eu comecei a ter um gosto mais definido e me inclinei pelo livro antigo. Eu acho que foi simultaneamente ao interesse de papai pelos pintores flamengos e holandeses dos séculos 16 e 17. Isso deve ter me influenciado. A parte moderna era com o Henrique, começou muito mais cedo do que para mim. Então eu era voltado para o antigo e o Henrique para o futuro. Mais adiante os dois passamos a gostar das mesmas coisas, mas eu demorei pelo menos até depois da guerra para dar valor ao que era moderno no livro, na ilustração. Mesmo assim, problema, dificuldade na transição não houve, foi uma coisa que se processou sem ter explicação.

Com toda a naturalidade...

JM – Com toda a naturalidade. Desculpe a interrupção, acho que isso exprime o processo e se eu fosse esquecer outra vez seria uma pena, não é?

Com a palavra Antonio Candido.

AC – Minha experiência é bastante parecida com a do José. Quase tomaria a do José como paradigma. Para a formação cultural do jovem, do adolescente, às vezes tem aspectos positivos e tem aspectos negativos o fato de você vir de uma família culta. O José, por exemplo, era filho de pais cultos em São Paulo, eu era filho de pais cultos no interior de Minas. Ele tinha em volta dele uma vida cultural importante, eu só tinha meu pai, minha mãe e a biblioteca deles. Portanto, estava no passado. Porque tinha só a biblioteca de meu pai e minha mãe... uma excelente biblioteca que você, Walnice, viu em Poços de Caldas...

Vi. Está na Unicamp, hoje, não é?

AC – Parte está na Unicamp. De modo que a minha formação foi como a do José, toda mergulhada no passado. Eu lia Alexandre Herculano, Anatole France, lia Renan, essa gente toda.

JM – Ah, também vou falar disso...

AC – Na minha casa, meu pai e minha mãe não tinham a menor noção do que fosse Modernismo. Lá no interior de Minas não chegava ninguém que soubesse disso. Tenho a impressão que as primeiras noções que tive do Modernismo foram através de revistas. Meu pai assinava o Boletim de Ariel e recebia Lanterna Verde, boletim da Sociedade Felipe de Oliveira. Ali estavam os modernistas presentes, falava-se em Cubismo, tinha reproduções de Lasar Segall, tinha poemas modernos, tinha Murilo Mendes, Manuel Bandeira... Eu achava aquilo muito curioso. Lembro que em 1933, estava fazendo quinze anos, passei algum tempo hospitalizado no Rio, por causa de um desastre; uma prima me levava livros, inclusive Libertinagem, de Manuel Bandeira. Eu li e achei muito divertidos poemas como “Atirei um céu aberto / na janela do meu bem: / caí na Lapa – um deserto... / – Pará, capital Belém!...” Mas considerei aquilo uma brincadeira. Posso dizer que a minha experiência com a modernidade não foi através do Modernismo, foi com a leitura dos romancistas do decênio de 1930, pelos quais me apaixonei: Jorge Amado, Amando Fontes, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Érico Veríssimo.

Foi pelo romance de 30 que o senhor começou?

AC – Foi por eles que comecei quando tinha 14 anos. Eu tive sorte, porque morava em Poços de Caldas, que naquele tempo era uma estação balneária da moda e então havia lá, surpreendentemente, uma excelente livraria, inclusive com livros franceses e ingleses. Nessa livraria eu encontrei Primeiro Andar, de Mário de Andrade, e – surpreenda-se – Serafim Ponte Grande, de Oswald de Andrade. Vou dizer mais: nos meus 83 anos de vida foi a única vez – única – que vi Serafim Ponte Grande à venda numa livraria.

Não diga! Como era o nome dessa livraria?

AC – “Vida Social”, do dr. Cornélio Tavares Hovelaque.

Que coisa, hein?

AC – Foi só lá. Não levei para casa porque tinha muito palavrão, então eu e um amigo decidimos ler ali mesmo, na livraria, o Serafim Ponte Grande. Achei divertidíssimo, mas não percebi o valor real. Repito que a paixão inicial foi pelo chamado Segundo Modernismo. Sobretudo porque estava ligado ao ângulo social: eram o pobre, o oprimido, o operário, o negro. De modo que travei contato sem entusiasmo com o Modernismo através do Boletim de Ariel, da Lanterna Verde, do Serafim Ponte Grande, do Primeiro Andar, de poesias de Murilo Mendes, Carlos Drummond de Andrade, mas não sabia direito do que se tratava. Para dar uma idéia da minha ignorância, eu achava que Sérgio Milliet era um escritor francês...

JM – Muita gente pensa isso até hoje.

AC – ...como Blaise Cendrars. Vim para São Paulo em 1936. Do ponto de vista artístico, por exemplo, isso de que o José estava falando, só tive consciência, só me emocionei com o Modernismo no Segundo Salão de Maio, no Hotel Esplanada. Acho que em 1938. Aí tive uma forte impressão da pintura, sobretudo a pintura revolucionária de Carlos Prado, da qual gostei muito. Mas gostei sobretudo de Flávio de Carvalho.

Era o irmão do Caio Prado Jr., não era?

AC – Era o irmão do Caio: fazia uma pintura social. Mas fiquei apaixonado pelo Flávio de Carvalho. Nesse tempo li o livro de um crítico italiano chamado Guido Severini, que era futurista: Raggionamenti sulle Arti Figurative, que me ajudou a entender a arte moderna. De modo que foi esse o meu começo. É preciso dizer que a gente não podia ler os modernistas, porque eles não eram acessíveis, não existiam em livrarias. Do Serafim Ponte Grande foram tirados quinhentos exemplares, que ficaram empilhados no apartamento do Oswald, no Rio. Mário de Andrade custeava os seus livros, tirados a mil exemplares, seiscentos exemplares. Você não encontrava para comprar. Quando eu era estudante, passei em frente ao Gazeau, na Praça da Sé, e vi empilhados uns vinte exemplares novinhos de Há uma gota de sangue em cada poema, para vender. Olhei aquilo, sabia que era de Mário de Andrade, comprei três a dez tostões cada um. Outro dia o Edgard Carone me contou que um americano pagou mil reais por um exemplar desse livro. Se eu fosse uma pessoa sensata tinha comprado os vinte.

Claro.

AC – Você não encontrava os livros. Eu tinha muita vontade de ler Mário de Andrade, mas só li Primeiro Andar e Macunaíma, que um amigo me emprestou. Até que, quando entrei na Faculdade de Filosofia, no bacharelado, em 1939, conheci a Gilda (Rocha de Mello e Souza) e ela me emprestou muitos livros de Mário de Andrade. Eu os levei para Poços de Caldas e li durante as férias de 39-40. Fiquei absolutamente fascinado, a tal ponto que resolvi copiar à mão Paulicéia Desvairada. Não cheguei ao fim, mas comecei. Veja como era difícil para um jovem, no decênio de 1930, o conhecimento do Modernismo e dos modernistas. Ao contrário, eram acessíveis os romances do momento. De modo que foi por aí que eu entrei na modernidade literária.

Eles é que eram best sellers... Eram muito vendidos?

AC – Relativamente. Por exemplo, Menino de Engenho foi um grande sucesso, teve logo segunda edição. Então saiu Doidinho, pela Editora Ariel, e teve certo sucesso. O José Olympio se embandeirou e quando editou Bangüê tirou dez mil exemplares, coisa enorme para o tempo. Mas o livro encalhou. Anos depois era possível encontrar essa primeira edição com a mesma capa de Santa Rosa.

JM – Você veja que coisa interessante. Pelo que ele está dizendo, verifico que algum interesse eu tive na década de 30, porque li os escritores nordestinos logo que saíram.

AC – É o Segundo Modernismo.

JM – Esses eu li também. Em 31 foi posta à venda a biblioteca do Alfredo Pujol. O José Olympio tinha comprado com a ajuda do José Carlos de Macedo Soares, porque o José Olympio trabalhava na Casa Garroux. Eu o conheci balconista dessa livraria, depois virou gerente e aí comprou a biblioteca do Pujol. E aí eu fui, com meus irmãos, e com papai, para ver os livros, e escolhi algumas coisas: mas era Machado de Assis, por exemplo, exemplares autografados, não tinha nenhum modernista na biblioteca do Pujol. Mas nos anos 30 li os nordestinos. Era também apaixonado por Anatole France e acho que ele é injustamente subestimado...

AC – Um grande escritor.

JM – ... é um escritor interessante, bom escritor.

AC – Alguns livros dele são notáveis.

JM – Não todos, mas alguns são ótimos. Romain Rolland...

Diga um livro notável de Anatole France.

AC – Les Dieux ont Soif , La Rôtisserie de la Reine Pédauque, L’Orme du Mail, Le Mannequin d‘Osier são livros extraordinários. Devo confessar que L’Orme du Mail e o Le Mannequin d‘Osier li umas dez vezes cada um.

Puxa! E o que o senhor ia dizer do Romain Rolland?

JM – Também é um grande escritor e hoje também injustamente meio esquecido. Quando papai morreu, em 39, eu estava lendo o Jean Christophe.

Em seis volumes?

AC – Dez volumes.

JM – Até hoje tenho várias edições, mas ninguém se interessa.

Está me ocorrendo agora: talvez fosse menos agressiva a inovação no romance nordestino do que na poesia?

JM – Ah, era mesmo.

Então devia ser menos doloroso, exigir menos adaptação entrar por aí. E depois chegar à parte mais difícil, com a poesia.

AC – Há duas coisas. Primeiro, aquele romance nordestino era neo-realista, perfeitamente acessível. Enquanto a poesia modernista requeria uma adaptação muito grande. Além do mais, os romances você encontrava para comprar, a poesia não encontrava.

JM – É claro que esse é um fator importante.

AC – Devo dizer que a partir de 39 começou para mim uma fase nova: a das relações com os modernistas. Em 39, com Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes, fui fazer uma visita a Mário de Andrade, intermediada pela Gilda. Nunca fui propriamente amigo dele, mas tivemos boas relações. Conheci logo a seguir Oswald de Andrade. Ele recebia aos domingos e nós íamos à sua casa.

JM – Engraçado que eu ia visitar o José Carlos de Macedo Soares, que recebia às 8 horas da manhã em sua casa, na biblioteca das onze mil virgens, e que não tinha nada de modernista.

Quem mais?

AC – Sérgio Milliet só fui conhecer em 1941; depois convivi muito com ele na Associação Brasileira de Escritores: ele foi presidente e eu segundo secretário, na primeira gestão. Conheci Guilherme de Almeida e tive algum contato com ele em 1943 e 1944, quando ambos colaborávamos na Folha da Manhã. Conheci Rubens Borba de Moraes e fui muito amigo de Paulo Mendes de Almeida e Fernando Mendes de Almeida, modernistas mais jovens que se formaram à sombra dessa gente.

Eram irmãos?

AC – Eram irmãos. Aí fiquei mais ou menos integrado na atmosfera paulista do Modernismo. Porque eu faço uma distinção entre o Modernismo carioca e o Modernismo paulista. Meu pai e minha mãe, por exemplo, eram fãs de Ronald de Carvalho, que é Modernismo carioca. Um Modernismo muito mais moderado...

JM – Quase não é Modernismo.

AC – O que o Guilherme de Almeida era aqui em São Paulo o Ronald de Carvalho era no Rio. Eu tenho as primeiras edições de Toda a América e Epigramas Irônicos e Sentimentais, que foram de meu pai e minha mãe. Eles sabiam muitos desses poemas de cor. O Modernismo do Rio era mais suave; vamos dizer que era light. Enquanto o Modernismo de São Paulo foi combativo...

De briga?

AC – Eram textos de ruptura, que me assustavam no começo, embora me atraíssem. Assim eram também os de Carlos Drummond de Andrade, influenciado pelos paulistas. Nos anos 30 eu li poemas dele no Boletim de Ariel e lembro o choque que me causaram, como “Os mortos de sobrecasaca”.

Chegamos à sociabilidade modernista, essa camada de intelectuais, artistas e aderentes que havia aqui em São Paulo e que depois vai dar na criação do Clube dos Artistas e do Museu de Arte Moderna. Não é isso, mais ou menos?

AC – Havia em São Paulo coisas interessantes de que não participei. O Azis participou, era muito ligado a esse pessoal e me contou como foi.

Azis Simão?

AC – Azis Simão. Era amigo do Oswald de Andrade e trabalhava no São Paulo Jornal com Cândido Mota Filho, que é um modernista da ala do Plínio Salgado, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo. O Azis conhecia essa gente toda e se dava muito com o Caio Prado Jr. Um certo grupo fundou o Clube de Arte Moderna que o Azis freqüentava e onde assistia às discussões do Caio. Foi uma atmosfera que eu não peguei. Depois o Paulo Emílio tentou fundar o Quarteirão, que não foi para diante: ele, o Décio, dona Vera Vicente de Azevedo e outros. Mas eu ainda estava em Minas, ignorava tudo isso e nem ouvi falar de coisas famosas como o baile à fantasia “Carnaval na cidade de SPAM” (SPAM = Sociedade Paulista de Arte Moderna).

JM – Nesse baile eu estive.

O senhor foi?

JM – Fui. No Museu Segall há uma fotografia do grupo, eu e meus irmãos estávamos lá. Era um baile de carnaval bem diferente do usual pois tinha um conteúdo artístico, mas nem por isso menos divertido.

Não eram aqueles bailes com cenografia de Lasar Segall?

JM – Exatamente, a cenografia era dele.

AC – Nada disso eu peguei. Vivia aqui em São Paulo em 36, 37 e 38 totalmente fechado ainda no meu velho mundo, indo ver conferências de professores franceses. Dos meus amigos era o único que ia à Pinacoteca, ninguém mais dava bola para a arte acadêmica.

JM – Que era naquela rua... perto da 11 de Agosto.

AC – Isso mesmo. Eu freqüentava as exposições no Palacete das Arcadas, na Quintino Bocaiúva, onde vi Hélios Seelinger, Hernani de Irajá, Oscar Pereira da Silva e outros, até que o Segundo Salão de Maio me deu o choque em 38. Quando entrei em 39 na Faculdade, as coisas se abriram, porque se falava em Mário de Andrade, Oswald de Andrade, como se fosse coisa corrente. Como não conhecia as pessoas, eu não as identificava na rua. São Paulo tinha um milhão de habitantes, você saía de casa e volta e meia via Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Cassiano Ricardo, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida.

Ainda mais que a Faculdade era no centrinho...

JM – Era uma época em que você não podia passar pelo Viaduto do Chá sem encontrar meia dúzia de conhecidos. Mas, por exemplo, você falou no Paulo e Fernando Mendes de Almeida. Eu fui amigo deles e tenho o livro Cartazes, do Paulo, acho que é de 28.

AC – Também tenho Cartazes: é de 28. Uma capa bem modernista.

JM – É. Esse eu achava ótimo..

Ele também fazia crítica de artes plásticas, não é?

AC – Fazia.

JM – Agora, vejo que estava esquecendo que meus contatos com o Modernismo foram anteriores a 1940. Entrei na redação do Estado em 30, tinha quinze anos e meio. Lá fiquei muito amigo do Guilherme de Almeida, que fazia crônica social.

AC – Gui.

JM – Gui.

Assinava Gui?

JM – Realmente. O Afonso Schmidt também era da redação, parte de um grupo literário, mas não era o grupo modernista: Léo Vaz, Sud Menucci, Amadeu Amaral Júnior, por exemplo. Mas foi lá que fiquei amigo do António de Alcântara de Machado.

Mas era um pessoal tingido de Modernismo?

AC – O Estado de S.Paulo, enquanto jornal, resistiu muito ao Modernismo. Inclusive eles não permitiam que se escrevesse lá com jargão modernista. O Alfredo Mesquita dizia sempre: “Mário de Andrade quando escreve para o Estado policia a linguagem. Gramaticalmente tudo direitinho”.

Foi o Estado de S. Paulo que publicou o famoso artigo do Monteiro Lobato contra a Anita Malfatti, “Paranóia ou mistificação”?

AC – Isso não sei.

JM – Foi sim; mas eu só vim a saber desse artigo bem mais tarde, pois na ocasião creio que tinha cinco anos.

Voltando mais para trás, eu queria perguntar sobre o seu outro Virgílio do Modernismo, que é o Rubens Borba de Moraes: ele participou da Semana?

JM – Ele ajudou a organizar, mas teve tifo durante a Semana, por isso não esteve presente. O Rubens era primo de uma cunhada minha, a Helena Muniz de Souza, que foi casada com o Henrique. Então a gente se conheceu, já nos anos 30, o livro nos aproximou, ficamos amigos de vida inteira e ele passou a ser o irmão mais velho meu. É o interlocutor que me falta, não encontrei ninguém, depois que ele morreu, que pudesse substituí-lo nas conversas. O Rubens era de uma cultura muito sólida e de uma irreverência intelectual muito grande. O Giordano fez agora um fac-símile do livro Domingo dos Séculos. Você conhece, não é?

AC – Você me emprestou, eu li. É um livro encantador, é uma conversa.

JM – Ele tinha contato com todo mundo, daí a minha amizade com Paulo Duarte, por exemplo. Agora, Paulo Duarte não se pode classificar como modernista.

AC – Ele era daquele grupo muito infenso ao Modernismo ligado a Amadeu Amaral, Júlio de Mesquita, admiradores de Olavo Bilac: aquela gente toda que era o grupo dele e não gostava do Modernismo.

Mas Paulo Duarte vai dar uma força muito grande ao Mário de Andrade, não é?

AC – Em seguida sim, mas isso já depois...

Quando assentou a poeira?

AC – Ele pegou o Mário de Andrade militante, não o Mário de Andrade modernista. Ao Mário de Andrade militante intelectual, ele deu uma força.

JM – Eu tinha contato com os modernistas, mas não cheguei a me integrar, aquilo não ficou fazendo parte da minha vida intelectual. Quando Antonio Candido falou em Cartazes me veio esse estalo, eu já tinha esses contatos e no jornalismo se encontra muita gente. Mas quando passei a apreciar o Modernismo não foi ruptura. E não só não foi ruptura, como no campo literário houve muita coisa anterior ao Modernismo de que continuo gostando...

AC – Concordo com o José, para mim também não foi ruptura, foi um acréscimo. Continuei ligado ao passado do mesmo jeito, inclusive fazendo heresias, como essa de ser a única pessoa da minha turma que foi sempre freqüentador da Pinacoteca. Ia lá ver Almeida Júnior, Pedro Alexandrino...

JM – Paulo Lopes de Leão era diretor da Pinacoteca quando era na Rua 11 de Agosto. Depois desapareceu com o largo aberto na frente do Palácio da Justiça e se mudou para o prédio atual.

AC – Desde aquele tempo eu freqüentei a Pinacoteca. Freqüentei também depois que foi para o prédio do Liceu de Artes e Ofícios e Gomes Cardim era diretor, até que Walter Wey fez uma reformulação completa, modernizou...

JM – Eles tinham uma oficina de encadernação nos anos 20, 30. Levei muito livro lá para ser encadernado. Agora, comecei a biblioteca antes dos anos 30, acho que logo passou a ter uma parte de Modernismo.

O senhor começou a comprar primeiras edições modernistas ali pelos anos 30?

JM – Inicialmente poucos. Mas por falar, por exemplo, no Serafim Ponte Grande, tem aqui um exemplar interessante.

É só falar que ele tem, não é? E é o original manuscrito!

AC – É o próprio, aqui?

JM – É o próprio. Então você vê, minha implicância com o computador é que ele impede o conhecimento do processo de criação. A pessoa corrige na hora: aqui ele preparou a obra. Na Revolução de 32 foi organizada uma exposição de quadros para serem vendidos em benefício das vítimas da guerra. Lá eu conheci também o Brecheret e muitos outros artistas. Estava pensando que foi só em 40, mas começo a ver que foi bem antes.

AC – Devo dizer que tive meu período de hipermodernismo. Eu era um jovem crítico agressivo e cheguei a escrever que a literatura brasileira começa praticamente em 1922. Naquele tempo fiquei realmente fascinado pelo Modernismo, mas continuo achando que foi um movimento fantástico, porque não foi só um movimento literário, mas um movimento espiritual que mudou a visão do Brasil. Era um grupo pequeno, aqui, no Rio, Rio Grande do Sul, Minas... Mas mudou, inclusive permitiu uma coisa muito importante que foi a redefinição do nacionalismo. O nacionalismo é uma coisa muito perigosa. Na Europa dá fascismo e aqui também pode dar, mas é freqüentemente fator positivo. Como dizia Pontes de Miranda muito bem, o socialismo dos países antigos pode ser internacionalista, mas o socialismo dos países novos tem que ser nacionalista devido à necessidade de lutar contra o imperialismo. Pontes de Miranda dizia isso em 1924. Os modernistas deram elementos para se fazer uma redefinição do nacionalismo, diferente de “pátria amada, salve, salve”. Nacionalismo para eles foi trazer o negro, o imigrante, o índio, o marginalizado; daí vem António de Alcântara Machado com Brás, Bexiga e Barra Funda.

JM – Com o Alcântara Machado eu me dava muito, no Estado, ele freqüentava muito a redação, também foi uma pessoa que eu admirava. Em 31, 32, 33, o Alcântara Machado já era um bom modernista.

AC – Ele já nasceu dentro do Modernismo.

JM – Já nasceu.

AC – Quando ali por 40, 41, 42, cheguei a essa conclusão que estou expondo, fiquei hipermodernista. Fiquei achando que o Modernismo foi uma revolução espiritual.

JM – O hiper eu não tive, mas por exemplo, dona Olívia Guedes Penteado era da diretoria da Cruzada Artística e papai foi um dos organizadores. Você se lembra do José Gonsalves, com s, foi outro diretor, era um paulista desses bem emperrados... Mas na Cruzada Artística eu tive um contato muito grande com artistas já modernos.

Não era a Sociedade de Cultura Artística, era outra coisa?

JM – Foi uma exposição feita na Líbero Badaró com doações de quadros. Este quadro, por exemplo, este Segall foi doado à Cruzada Artística e depois papai comprou: era para vender em benefício das vítimas da guerra. Agora que estou vendo isso, eu achava essa gente bastante normal.

E o senhor começou a se tornar um militante de arte moderna também?

JM – Nessa época nós já tínhamos bastante contato. Mais tarde Antonio Candido, Paulo Emílio e Décio, quando eu fui secretário de Cultura, nós nos reuníamos aqui em casa, porque eles não queriam participar oficialmente. Era o conselho privado aqui. Aí o Paulo Emílio, por exemplo, era de uma irreverência total, foi um bom amigo. Também não foi planejado, diria que na minha vida nada foi planejado. As coisas foram acontecendo, eu nunca tive ambição de fazer alguma coisa, de ser, de ocupar cargos. O que veio para mim na vida foi fruto de acaso. Agora, quanto à Cultura Artística, foi fundada em 1912 e papai foi um dos primeiros sócios. Quando nós começamos a ir, no fim dos anos 20, eles cobravam cinco mil réis por mês, dando direito a um cavalheiro e duas damas nos recitais. Nos anos 30...

Que tempos bons, para cada cavalheiro havia duas damas...

JM – As coisas foram acontecendo. Na vida brasileira você é amigo de fulano, beltrano, sicrano, qualquer iniciativa que eles tomavam procuravam a gente, qualquer iniciativa que a gente tomasse procurava esses amigos, então fui entrando, na Bienal eu conheci o Cicillo. Uma vez ele me disse: “Você nunca me convidou para jantar em sua casa”. Eu disse: “Quem sou eu para convidar o Cicillo Matarazzo para jantar em casa?” Ele disse: “Não, estou querendo ir lá em sua casa”. E eu disse: “Ótimo”. Ele veio, jantou aqui, conversamos, daí a uns dias ele me convida para ser diretor da Bienal. Ele teve o cuidado de procurar conhecer melhor o ambiente, as idéias. Aí eu entrei na Bienal, fiquei um tempo no Conselho, depois fui eleito presidente. Fiz uma tentativa de ampliar as atividades, acho até hoje que é excessivo o gasto com uma exposição a cada dois anos, uma coisa meio hermética para o grande público. É um gasto muito grande: achava que devia ter atividade permanente de seminários, cursos, e uma exposição nacional alternando com a internacional. João Marino, Luís Villares e eu fizemos aquela exposição de arte brasileira – já vou me lembrar do nome, foi uma linda exposição. Mas depois não vingou... Tradição e Ruptura, era o nome. Foi um trabalho muito bom, a exposição era interessante. Depois eu continuei no Conselho, mas aí começou a haver uma direção que resolvia as coisas e o Conselho da Bienal não dava palpite nenhum. Deixei a Bienal, porque no fundo eu achava que a gente tinha uma responsabilidade pelo que estava sendo feito, sem ter nenhuma possibilidade de interferir.

Gostaria de pedir a José Mindlin para esmiuçar seus múltiplos papéis como propagador do Modernismo, desde ser colecionador de primeiras edições modernistas até ocupar o posto de presidente da Bienal, como acabou de mencionar. E como é que teve a idéia de reimprimir as revistas do Modernismo: foi uma tarefa?

JM – Quando a Metal Leve fez 25 anos, em 75, começaram a falar em jantar, coquetel, eu disse aos companheiros para fazermos uma coisa menos efêmera. Jantar e coquetel as pessoas vão por obrigação, saem criticando e depois esquecem. Não sobra nada como memória. “Vamos fazer uma coisa diferente, vamos reimprimir a Revista de Antropofagia”. Acho que foi das primeiras empresas que chegou a publicar livros. Depois fizemos a Philomática, não tinha nada de Modernismo, revista da Sociedade Philomática, publicada em 1832 na Faculdade de Direito, em seguida A Revista, publicada pelo Drummond em 1924, e a revista do Salão de Maio...

Klaxon?

JM – Não, Klaxon não.

Terra Roxa?

JM – Também não. Aí surgiu um movimento de edições feitas por empresas.

AC – Vocês inspiraram esse movimento.

JM – Eu tinha gosto, não estava fazendo nada de benemérito, estava fazendo porque gostava e achava que era importante. Sempre achei que mais importante do que a própria empresa, era seu papel social: a empresa como instrumento de desenvolvimento social, mas não como uma finalidade em si mesma. Quando começaram a falar em... qual a palavra que se usa para benemerência?

AC – Filantropia?

JM – Não.

Mecenato?

JM – Mecenato. Eu reagia, mecenato implica na idéia de favor, empresa que apóia a cultura não faz mais do que sua obrigação.

O senhor publicou também o poema do Drummond ilustrado...

JM – Tive a idéia, falei com o Drummond... Eu conhecia o Drummond muito superficialmente, encontrava com ele no sabadoyle, aí a gente foi estabelecendo uma relação mais cordial, mas assim mesmo cerimoniosa. Um dia disse ao Plínio que gostaria de fazer uma edição de arte com alguma coisa do Drummond. O Plínio disse: “Peça você mesmo porque para mim ele recusa facilmente”. Falei com ele, ele agradeceu, disse que gostaria muito, mas não tinha nada de expressivo inédito. Mas disse que estava trabalhando num poema, um tema que o tinha interessado a vida inteira, era a visita que o Mário de Andrade fez ao Alphonsus de Guimaraens, em 1919, se conseguisse terminar o poema me mandaria. Dois meses depois recebo um envelope, promessa cumprida, e aí se estreitou a relação. O Drummond gostava muito de arte gráfica, levamos seis meses para determinar o que se ia fazer: formato, papel, tipo para ser usado, ilustração, tudo. Ficamos muito amigos, realmente. Depois que chegamos a definir tudo, levou mais seis meses para fazermos a edição. Aí ele queria corrigir as provas... Ficamos realmente amigos. Mas a minha relação com o Drummond, e a geração mineira ... naquele tempo estavam vivos o Afonso Arinos, o Ciro dos Anjos...

Pedro Nava...

JM – Do Pedro Nava também fomos amigos.

Eu jantei com ele e em outra ocasião com o Plínio Doyle, aqui em sua casa.

JM – Na conversa com esses escritores que formavam um círculo desde a mocidade, eu tinha a sensação de ter chegado a um banquete na sobremesa, porque não peguei toda a parte de vida em comum deles. Assim mesmo valeu, foi das boas experiências que tive na vida.

Antonio Candido acabou ficando amigo epistolar do Drummond...

AC – As cartas do Drummond para mim eu dei ao José, para ficarem mais seguras: vinte e poucas. Tivemos algum contato, muito boas relações, mas nunca fui à casa dele e nunca convivemos, salvo em 1947, no Segundo Congresso Brasileiro de Escritores, em Belo Horizonte, onde durante uma semana estivemos na mesma comissão e íamos todas as noites tomar chope e cantar no Bar Pingüim, com Rodrigo de Mello Franco de Andrade, Décio de Almeida Prado, Arnaldo Pedroso d’Horta e outros. Eu sou muito esquivo, ele também era. Houve duas vezes em que nos encontramos no Rio e um fingiu que não viu o outro...

Isso é o cúmulo da mineirice, não? Eu queria saber, do seu lado, suas atividades de propagador do Modernismo. Por exemplo, suas relações com o acervo de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade: como vieram parar em suas mãos, como o senhor idealizou o destino que podia dar a eles, e os frutos que estão dando até hoje.

AC – Depois que entrei mesmo no Modernismo, a partir de 39, tinha 20, 21 anos, achei que devia ser objeto de estudo, me apaixonei, me tornei crítico literário e escrevi muito sobre os poetas da atualidade. Depois que me tornei professor de Literatura, em 58, quando fui para Assis, lá não havia campo para isso. Quando vim para São Paulo, em 61, minha preocupação foi instalar o estudo do Modernismo na universidade. Há uma tradição universitária, não brasileira, mas universal, de você só estudar autores mortos. Tem uma certa justificativa: a obra está pronta, você tem uma perspectiva completa. Na França, por exemplo, o primeiro autor moderno a ser estudado na Sorbonne foi Guillaume Apolinaire, em 1960, mais ou menos, depois de 42 anos de sua morte em 1918, por iniciativa de uma mulher, Marie Jeanne Durry. Objeto de tese podia ser, como Valéry foi ainda vivo. Mas dar curso para os alunos não podia. Isso é universal. O professor Fidelino de Figueiredo, que foi um guru dos cursos de Letras da Faculdade naquele tempo, dizia: “Só se estuda autor morto, porque a obra já está fechada e você pode fazer avaliação”. Eu partia de um ponto de vista diferente, inclusive devido ao que li no Anuário do Instituto de Inglês, da Universidade de Columbia, para o ano de 1940, livro que Mário de Andrade me deu. Lá havia um estudo de William York Tindall sobre a pesquisa erudita em literatura contemporânea, tão legítima quanto qualquer outra. Depois que me tornei professor de Teoria Literária em nossa Faculdade, em 1961, foi a primeira coisa que fiz. Em literatura brasileira os autores mais modernos que se davam eram Aluísio Azevedo e Raul Pompéia. Comecei a fazer o seguinte: no primeiro ano dava autores tradicionais, no quarto ano só dava os modernos, ajudado pelo aparecimento de edições acessíveis dos poetas, as da Editora do Autor, no Rio de Janeiro, dirigida por Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos. Eles fizeram antologias de Cecília Meireles, Jorge de Lima, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Murilo Mendes, Vinícius de Morais e outros. Com esses livros em mãos, pude dar cursos sobre os poetas modernos. Na Universidade de São Paulo, salvo erro, os primeiros cursos sobre os poetas a partir do Modernismo foram os meus. Em 61.

E o Estudo Analítico do Poema, aquele que eu obriguei o senhor a preparar para edição recentemente, é de...

AC – De 64.

Já é todo baseado nesses textos do Modernismo.

AC – Já. Antes disso, dei um curso de análise do poema “Louvação da Tarde” de Mário de Andrade, que acabou tendo muitas conseqüências. Desse seminário saiu a pesquisa em casa de Mário de Andrade, a cargo de Nites Teresinha Feres, Telê Ancona Lopez e Maria Helena Grembecki. Eu falei: “Vamos examinar a marginália do Mário de Andrade”. Então arranjei uma verba com a Fapesp, que não dava verba para literatura, só para ciência; mas mostrei a eles que pode haver pesquisa em literatura. A primeira foi para essas meninas e para Pérola de Carvalho analisar Machado de Assis. É preciso dizer que como minha disciplina era nova, sem tradição nem hábitos adquiridos, foi fácil introduzir cursos sobre autores recentes, contrariando a norma. Além disso, animei pesquisas sobre Mário e sobre Oswald. Encaminhei as três moças que mencionei para o estudo da obra de Mário, e Vera Chalmers para a de Oswald.

Fale um pouco sobre os acervos de Mário de Andrade e de Oswald de Andrade, esses tesouros dos dois principais modernistas...

AC – Mário tinha manifestado informalmente à família dele o desejo de distribuir o seu acervo por várias instituições: Biblioteca Municipal, Biblioteca de Araraquara, Pinacoteca, Cúria – o que seria uma pena. A família não deu andamento e ficou tudo na casa da Rua Lopes Chaves, onde a irmã dele foi morar. Um dia o irmão dele, Carlos de Morais Andrade, me chamou e disse: “Nós estamos numa situação um pouco complicada, porque precisamos dar um destino a isto. Além disso minha irmã está em situação difícil porque o marido morreu e ela precisa de dinheiro. Nós não queremos vender, porque o Mário não queria vender nada, mas queríamos ceder para alguma instituição que desse uma compensação pequena a ela. O que você acha?” Estavam reunidos Morais Andrade, o sobrinho Carlos Augusto de Andrade Camargo e Airton Canjani, casado com a irmã deste. Eu disse: “Há três possibilidades: transformar isto aqui numa Casa de Mário de Andrade; segunda, incorporar à universidade; terceira...” Esqueci. Esqueci completamente a terceira hipótese. “Se vocês quiserem transformar isto numa Casa de Mário de Andrade a situação é boa porque, embora eu seja oposição, o atual governador do Estado, que é o Roberto de Abreu Sodré, foi meu companheiro de luta política contra o Estado Novo. O secretário do Governo é amigo meu, o Arrobas Martins, colega de turma na Faculdade de Direito. Eu sei que eles estão loucos para fazer uma Casa de Mário de Andrade.” Aí eles conversaram, pensaram um pouco, e com grande bom senso disseram: “Queremos incorporar à universidade”.

JM – Realmente, foi o melhor.

AC – É o melhor, eu fiquei satisfeito. Eu não queria forçar essa hipótese porque ...

Parecia que estava puxando a brasa para a sua sardinha.

AC – Exatamente. Por isso eu dei as três alternativas. Eles toparam, fui falar com o Castello, que pegou fogo, encampou a idéia e promoveu tudo, depois de obter o consentimento da Reitoria. Morais Andrade me disse: “Não quero um tostão para mim, mas quero uma compensação para minha irmã” – fixando duzentos não sei o que – mil ou milhões, porque esqueci qual era a moeda. A reitoria achou tão pouco que deu quinhentos, quantia quase simbólica em face da qualidade e quantidade do acervo. Foi a partir daí que se formou no IEB o grande centro de estudos em torno de Mário de Andrade. Quanto ao Oswald foi o seguinte: a família dele não vendeu nem doou o acervo, mas depositou-o no Instituto de Estudos Brasileiros, com a condição de ficar sob minha responsabilidade pessoal.

O senhor era testamenteiro do Oswald de Andrade?

AC – Não. Eu era compadre dele, padrinho do Paulo Marcos. O acervo ficou muito tempo no IEB. Uma vez um americano queria pesquisar, me avisaram, fui lá, separei uma parte que podia ser consultada, uma parte que não podia, a não ser com autorização minha. Oswald não tinha papas na língua e nos seus papéis havia coisas cujo conhecimento me pareceu que devia ser adiado, inclusive para evitar problemas para a família. Daí a parte lacrada que nunca ninguém consultou; consultaram o resto. Um belo dia a Unicamp quis comprar e os herdeiros concordaram. O IEB estranhou, achando que o acervo lhe pertencia. Consultado pela diretora Myriam Ellis, esclareci tudo e o negócio foi feito com Campinas.

Porque havia uma doação em dinheiro, não é isso? A Unicamp estava
disposta a comprar?

AC – E pagou muito bem. O acervo do Oswald era importante, mas não se compara com o de Mário. São algumas gavetas de papéis, enquanto o de Mário tinha uma coleção de quadros que era um museu, esculturas, quatrocentas gravuras, inclusive algumas de Albrecht Dürer, coleção de partituras, coleção de arte popular, coleção de imagens, quinze mil volumes na biblioteca: uma coisa monumental.

E os originais dos papéis dele todos.

AC – Sim, a papelada com a correspondência monumental.

Eu só queria fazer mais uma pergunta: o senhor mencionou de passagem sua atividade como crítico literário, que ficou na mira comentando tudo quanto saía do Modernismo. Muitos anos, décadas?

AC – Eu fui crítico literário militante mesmo de 1941, em Clima, até 47 no Diário de S.Paulo, que acaba de ser ressuscitado. Nesse período, sobretudo de 43 a 47, porque Clima saía pouco, costumo dizer que tive uma sorte extraordinária, que os meus colegas de hoje não têm: volta e meia saíam livros de Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond, Murilo Mendes, Ciro dos Anjos, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, etc. etc.

Não tinha mãos a medir, nem sabia o que comentar naquela semana...

AC – Não tinha mãos a medir: esses eram os livros da semana. Comparando com os de agora... Mas não vou dizer os nomes, nem quero desmerecê-los...

Então não diga.

AC – Quero lembrar uma coisa curiosa do meu tempo. Quando eu fazia crítica, havia uma espécie de silêncio em torno de Oswald de Andrade. O pessoal dizia: “Não escreva sobre ele, porque ele vem em cima”.

Ele era briguento, não era?

AC – Eu senti isso na pele.

Podia ser virulento.

AC – Eu pensava, não é possível, Oswald de Andrade é um escritor que está sendo menosprezado. Creio que fui a primeira pessoa da minha geração que escreveu algo longo sobre ele, três rodapés seguidos, fazendo uma série de restrições. Ele ficou louco da vida, desceu o pau em mim. O artigo dele está no Ponta de lança. De Mário de Andrade fiz uma interpretação, quando saíram as poesias completas a primeira vez: escrevi sobre a teoria estética dele dois longos rodapés; escrevi sobre Drummond, sobre Manuel Bandeira, Murilo Mendes e os jovens que iam aparecendo. Sobre João Cabral de Melo Neto escrevi o primeiro artigo aqui no Sul, onde ninguém sabia quem era. A única informação sobre ele que eu tinha era de um amigo comum que dizia: “Tem um amigo meu no Recife que veio para o Rio agora, não sei se presta, falei para ele que você é crítico e sugeri que me desse um exemplar do livro que publicou para te dar. Eu sei que ele tem uma dor de cabeça desgraçada.” Eu só sabia isso do João Cabral. Pude escrever sobre Clarice Lispector, sobre João Cabral, sobre Guimarães Rosa, as grandes novidades do meu tempo. Tive uma sorte extraordinária. Como crítico valorizei demais o Modernismo e cheguei a adotar maneiras de escrever de Mário de Andrade, até que Lourival Gomes Machado me deu uma gozada, mostrando que eu continuava a escrever de maneira tradicional, apenas semeando de vez em quando uns “Me parece” ou “Lhe dizendo” iniciais.

JM – E fez escola também. Antonio Candido, se não existisse, precisaria ser inventado. Ele formou você, o João Alexandre...

AC – Não, o João Alexandre não. O João Alexandre já veio formado.

JM – Eu levei o João Alexandre para você na Rua Maria Antonia. Ele veio formado mas chegou a São Paulo, não conhecia ninguém.

AC – Eu conheci o João Alexandre no congresso de Assis, em 1961. Ele foi para Brasília, mas depois foi cassado lá e veio para São Paulo, onde acabou por trabalhar comigo.

JM – Aí o Gastão me escreveu de Recife...

AC – O João já veio formado, não posso me gabar de tê-lo influenciado ou tido como aluno, como foi o caso de Walnice, Roberto Schwarz, Davi Arrigucci, Teresa Vara, João Lafetá, Lígia Chiappini, para mencionar apenas os que foram também meus colaboradores no curso de Teoria Literária e Literatura Comparada. Eles e outros são críticos de primeira ordem e foi para mim uma sorte extraordinária tê-los como estudantes, orientandos e colegas. Cheguei a escrever que gostaria de ter escrito o ensaio de um deles (dá uma piscada para a entrevistadora).

JM – Você se lembra qual? Acho que pode falar sem ser em off, não?

Não, deixa para lá.

AC – Lembro: foi a análise de “Meu tio o Iauaretê”, pela Walnice. Mas José, você precisa lembrar o seguinte: nossa posição é essa, mas no meio em que nós vivíamos havia uma atmosfera de gozação fantástica com o Futurismo.

JM – Mas olha, eu me lembro, o ambiente todo, em 50, 51, com o Nonê, o Mário da Silva Brito. O Ernani Campos Seabra e eu publicamos uma tradução da Dora Ferreira da Silva das Elegias de Duino.

AC – Eu tenho.

JM – Tiragem de cem, cento e poucos... Aquilo esgotou-se, nós não tínhamos dinheiro para fazer gravuras, então o Nonê fez duas ilustrações originais para cada exemplar. E nós fomos à casa do Segall para mostrar o livro e o Oswald de Andrade estava lá. Aí o Oswald disse assim: “Por que vocês não publicam O Santeiro do Mangue?” E o Segall disse: “Ah, e eu ilustro”. Mas O Santeiro do Mangue, em 50, era impublicável. E no entanto é uma coisa que não tem nada de mais.

AC – Hoje é inocente.

JM – Completamente inocente. Então você vê, esse ambiente de que você fala existia, o pessoal não...

AC – Você lembra qual era o exemplo de poesia modernista que se dava de brincadeira, na Faculdade de Direito? “A lua lá vem surgindo / redonda como um tamanco / pedaço de telha é caco / urubu não tem pescoço”.

Era gozação.

AC – Era gozação. Havia uma cantiguinha: “Maria, Maria / Maria Marinetti / teu pai é Graça Aranha, / tua mãe é Coelho Neto”.

Tem alguma coisa a ver essa conversa com o fato do Lasar Segall ter feito uma série imensa chamada Mangue? E O Santeiro do Mangue, o trabalho com o poema do Oswald, acabaram por não fazer?

JM – Eu acho que não.

Mas não era mau...

JM – Não era mau, mas a gente não tinha coragem de publicar...

AC – Devo dizer a você o seguinte, José: a Balada do Mangue, do Vinícius, da qual te dei o autógrafo, saiu na Revista do Brasil e a revista foi apreendida.

Por causa da Balada do Mangue?

AC – Foi apreendida: por ser “poesia pornográfica”.

JM – Isso foi no Estado Novo?

AC – No Estado Novo. Em 44.

No apagar das luzes.

JM – As coisas que a gente fazia... Primeiro era a idéia de fazer, depois muita gente procurava, de repente começaram a falar que eu tinha cultura, um blefe completo...

AC – Muita gente acreditou...

JM – Pois é. Eu me comparo muito ao Pacheco do Fradique Mendes. Outro dia soube de uma coisa muito engraçada, de que absolutamente não me lembrava. O Roberto Teixeira da Costa agora é presidente do Conselho do MAM. Então ele disse: “Eu estava mexendo na papelada do museu e encontrei a ata de fundação do Museu de Arte Moderna. E você foi o primeiro presidente.” Eu. Não tinha a menor lembrança disso.

Esse daqui de São Paulo? Quando foi, 1950?

JM – Mais ou menos. Não tinha a menor lembrança. Se tivesse que ir a juízo eu ia errar, não? Eu fiz muita coisa por força de amigos, solicitações: o que eu tenho de dar em matéria de conselhos, se vivesse no século 19 seria conselheiro. Realmente, acabei fazendo coisas porque acho que o desenvolvimento cultural do país é uma coisa fundamental. Mas mais é por gosto, também. Então... E procuro, a gente procura ajudar... O IEB, procura apoiar... O IEB é uma das boas coisas...

O IEB é uma grande realização.

JM – Esse projeto de doar nossa biblioteca à USP, o normal seria entregar ao IEB. Mas você não tem segurança, dadas as influências políticas, do que vai ser a universidade daqui a vinte, trinta ou cinqüenta anos.

Entendo, concordo e assino embaixo.

JM – Aliás, o Jacques Marcovich, o reitor, também concordou, disse isso. Então tem esse período de experiência, de 99 anos, se tudo correr bem aí passa para a USP.

AC – Daqui a 99 anos você pára para pensar, se valer a pena redobra a dose.

JM – A gente vai acompanhando isso, neste século. O normal é que a universidade, no Brasil, não tem a segurança de uma universidade americana.

AC – Não, não tem.

JM – O IEB é quase um milagre. Estar se mantendo assim...

O primeiro diretor do IEB foi Sérgio Buarque de Holanda?

AC – Sérgio inventou e deu configuração ao IEB, mas, vamos dizer, quem encorpou foi o Castello. O IEB é o Castello.

O senhor disse lá atrás que houve um momento em que achou o Modernismo o máximo. E hoje, como acha?

AC – Continuo achando. Nesse ponto sou passadista, porque hoje ser modernista é ser passadista. Já veio a geração de 45 contra...

E depois o pós-modernismo...

AC – E o pós-modernismo. Mas eu continuo achando. O Modernismo é a grande revolução cultural do Brasil no século 20. Acho até que tudo mais decorre em grande parte das concepções dele. Não sei se exagero, mas acho uma coisa extraordinária o que ele fez. E no Modernismo a figura central foi Mário de Andrade. O Oswald, por exemplo, era uma pessoa muito interessante, muito divertida, mas não era homem de grande envergadura intelectual, nem de grande cultura. A pessoa que pensou o Brasil, que fez projetos culturais foi Mário de Andrade. Influiu diretamente na cultura brasileira. Fez o plano do Serviço do Patrimônio Histórico. Fez o plano da Enciclopédia Brasileira. Transformou o Departamento de Cultura. E era um homem tímido, que não tinha sido nem funcionário público.

JM – Um departamento municipal que é modelo até agora.

Como é que se chamava a missão Mário de Andrade ao Nordeste?

AC – A primeira grande pesquisa musicológica foi ele quem fez. E a Sociedade de Etnografia e Folclore que ele fez com a Dina Lévi Strauss. Considero o Mário o grande intelectual brasileiro que mais serviços prestou à comunidade.

JM – Estou plenamente de acordo.

AC – Sem falar na obra que escreveu, inclusive essa coisa monumental que é a correspondência, de uma importância como não conheço outra. A do meu amado Proust, por exemplo, é lamentável. São 21 volumes de fofocas, queixas, banalidades, com pouca coisa relevante.

A fumigação...

AC – Ela vale como documento, para conhecer a vida de Proust, mas não tem substância. A correspondência de Mário de Andrade é do tipo e da importância da de Flaubert, por exemplo: debate intelectual, coisa séria. Eu acho que é um dos maiores monumentos da literatura do Ocidente.

JM – O que ele sacrificou, as obras que poderia ter escrito. Porque são milhares de cartas que ele escrevia à mão...

Todas as noites.

AC – Achando que era obrigação moral dele, que não podia falhar. Sobretudo aos jovens que se dirigiam a ele. Oswald de Andrade, para caçoar de Mário, dizia: “Mário de Andrade quer é popularidade; qualquer analfabeto lá do Piauí escreve para ele, ele responde e faz cartaz no Piauí”.

Será possível que o Modernismo tenha sido mais importante para o Brasil do que para o resto do mundo?

AC – Talvez. Eu estou pensando a coisa muito em grande.

JM – O Modernismo latino-americano é completamente diferente.

AC – Bem diferente, é outra coisa. Você vê, a partir daquele impulso que foi dado, saíram as revistas, a segunda fase da Revista do Brasil, essas revistas todas que o José reeditou, e mais isso e mais aquilo. Saiu a grande fermentação intelectual; e esses modernistas avançados, na maior parte, ou foram para o Partido Democrático ou para a esquerda. E aqueles modernistas mais tradicionais ficaram na direita e no PRP. Ora, do Partido Democrático e da redação de O Estado de S. Paulo, que acabou aceitando o Modernismo, saiu a Universidade de São Paulo. O piparote inicial foi a Semana de Arte Moderna que deu. A fundação da Universidade de São Paulo é uma coisa fundamental na cultura brasileira, porque transformou a cultura do Brasil em todos os setores. Sem querer forçar muito, ela foi devida ao grupo que completou o projeto da Semana de Arte Moderna: Júlio de Mesquita Filho, Fernando de Azevedo, Paulo Duarte, Antônio de Almeida Prado e outros. Eles não aceitavam a estética do Modernismo, mas desenvolveram muito da sua ideologia no campo da cultura. E há outro tipo de modernidade no Brasil, completamente diferente. A do Monteiro Lobato, por exemplo. Uma modernidade pragmática, voltada mais para a economia, o petróleo, a indústria editorial, o aço. É outra coisa. Muito bom, também, mas na parte cultural acho que a Semana de Arte Moderna foi fundamental. Continuo achando que é um fenômeno fundamental e nesse fenômeno a figura central é Mário de Andrade. Eu não sei como um homem que morreu com 51 anos de idade pode deixar realizada aquela obra. Verifiquei isso em vários setores. No segundo ano da Faculdade tive um curso de Sociologia Estética com Roger Bastide. Como trabalho de aproveitamento fiz uma pesquisa sobre a mudança do gosto musical em São Paulo. O ano era 1940 e eu verifiquei que a partir da atuação de Mário no Departamento de Cultura, de 1935 a 1938, houve mudanças acentuadas, que registrei em gráficos. Por exemplo: a curva da ópera começou a descer e a da música de câmara começou a subir. Mário de Andrade tinha criado o Coral Paulistano, o Coral Lírico, o Quarteto Haydn, o Trio São Paulo e aberto o Municipal para o povo. Então senti como esse homem tinha mudado a sensibilidade de uma cidade.

JM – Você fala do movimento modernista, que realmente é interessante. Você tem Mário de Andrade e o resto do movimento modernista. Vejam aqui a dedicatória autógrafa no primeiro exemplar de Memórias Sentimentais, “à pintora da capa, o exemplar princeps”. E de repente você chega aqui, no mesmo dia: “Para as mãos reais de dona Olívia Guedes Penteado, este volume pobre”. Minha tese é que – esse era o único exemplar, o exemplar princeps – dona Olívia teria passado em casa dele e ele pegou o exemplar que tinha dado para a Tarsila e deu para dona Olívia. Isso define o Oswald de Andrade, completamente espeloteado.